in loco - II festival de paulínia
Dia 2: Importância alguma
por Francis Vogner dos Reis

Há aqueles momentos em que o cinema é tão digno de crença que alguns filmes ruins são passíveis de reflexão acurada. Nesse caso, independentemente dos estímulos do crítico, o tal filme ruim faz apostas, se lança ao desconhecido e se dedica ao material de tal forma que os problemas graves não deixam de ser uma provocação ao espectador e ao chamado gosto médio, sobretudo o gosto médio da crítica, o território mais acomodado no "meio termo" e no "bom senso" (traduzindo: falta de critério), no que esses termos têm de mais covardes e oficiais.

O fato é que no cinema brasileiro atual não há esses maus filmes. Há filmes importantes. Todo maldito filme tem a sua "importância", seja junto ao público, seja junto à necessidade de ter filmes ousados que colocam questões e que "pensam". A importância, que se diga, não é questão de virtude em nenhum caso: é uma categoria que induz à obrigação. Esse é o discurso oficial que pode vir tanto da Ancine quanto de um blog que não possui nenhum leitor. O fato é que quase não há filmes importantes ou meramente relevantes. Peço perdão ao leitor a quantidade de aspas (e o texto terá mais). É que alguns termos são tão aviltados que é impossível usá-los sem colocá-los em perspectiva, porque se assim não fizer (pelo menos no caso desse limitado escriba), é possível que qualquer frase ou idéia seja compreendida no registro oficialesco e de pretensa celebração da diversidade. O texto trai, a linguagem é limitada.

No caso dos filmes vistos até agora em Paulínia é fácil entender a importância da escolha de alguns filmes, a importância subjacente a essa escolha e a importância em se falar desses filmes. Em qualquer um desses casos, o cinema sai perdendo. Se levarmos em conta o segundo dia de programação do II Festival de Paulínia, torna-se desanimador e desestimulante pensar sobre os filmes, simplesmente porque eles próprios se eximem da função, simulando criar uma reflexão. Reflexão esta, claro, descolada do filme, que subjaz ao filme e que permanece fora do filme. O fato é que vimos na noite de ontem dois longas e dois curtas que se utilizam de expedientes pitorescos para criar seus efeitos, seja de reflexão, seja de poesia. Muitos procedimentos dos filmes não almejam absolutamente nada, e em alguns casos, são arquitetados calculadamente com fins desonestos, mas que querem soar espirituosos e afetivos.

A vontade é não escrever sobre nenhum deles por uma questão moral. Delegar importância a eles é entrar no jogo de filmes que não merecem atenção alguma. Desculpem a franqueza, mas dedicar tempo e nervos a nulidades estéticas é se dar conta que a tragédia de um cinema que anda a passos curtos é dar olhos e ouvidos a filmes que não representam absolutamente nada. Mas como vim ao festival para entender o painel de filmes brasileiros configurado nesse festival de muitas intenções e nenhum conceito (como muitos outros Brasil afora), como representante da Revista Cinética e como bom cristão que não consigo ser, vou traçar brevemente o perfil de cada um dos filmes.


Dois goles de cianureto

Os curtas Vida Vertiginosa, de Luis Carlos Lacerda, e Morte Corporation, de Léo del Castillo, só seriam simplórios, se não fosse o naif e falta total de algum critério que norteie as suas escolhas. Todas as escolhas. Quando um filme chama a atenção por seu desastre formal, não conseguindo assim atingir qualquer resultado além e apesar disso, cabe somente falar do que ele não consegue falar.

Vida Vertiginosa é baseado em personagem e conto do escritor da belle époque carioca João do Rio. O problema do filme o atravessa nas mais diferentes camadas e não é só um problema do projeto, mas de uma escrita cinematográfica mínima. É um filme com intenções formalistas: depende da montagem, da decupagem e das composições para poder ter alguma vida, pois é nisso que ele se ancora. Acontece que uma boa montagem não é possível, porque não existe decupagem que faça sentido e composições que construam um espaço cênico necessário apesar de haver uma intenção clara e óbvia em encenar situações em alguns espaços. Seu decór declara que é um filme de inaptidão e supérfluo. Triste situação de Luis Carlos Lacerda: ele é hoje o cineasta que melhor (ou pior) condensa todas as deficiências de uma "estirpe" de cineastas brasileiros como Paulo Thiago e Sergio Rezende. É tão primário que chamá-lo de acadêmico seria elogio.

Se Morte Corporation, de Léo Del Castillo, consegue ser melhor do que o curta de Lacerda é porque ele se aplica com maior destreza ao seu material (homem encontra a morte), o que, em hipótese alguma, o exime de ser pequeno em espírito. O curta sofre do mal de muitas produções pequenas que têm à mão alguns equipamentos de cinema como dolly, gruas e etc. Usa-se qualquer recurso à mão - indiscriminadamente - para se filmar um diálogo, como na primeira cena em que os dois personagens conversam e a câmera se desloca sideradamente de um lado para outro. Não há método e nem um procedimento mínimo que seja consciente nesse filme. Já seria pouco se essa consciência de procedimentos apelasse para os clichês nos enunciados que o valor de um mero plano pode gerar.


O baixo pitoresco e a fábula picaresca

O tom é do pitoresco em Caro Francis e do picaresco em O Contador de Histórias. Definições neutras, é verdade, mas que se potencializam como pejorativas nas escolhas conscientes de ambos os filmes. Essa é a diferença entre os longas e os curtas da noite, pois os curtas nem chegam a ser primários.

O Contador de Histórias parte de algo interessante: um garoto que fabula sua própria história e dessa maneira forja para si uma dignidade que o mundo à sua volta (literalmente uma fábrica de marginais) lhe nega. Se ele foi um marginal fabricado pela miséria e pelo Estado (sem confusão nem separação), há a possibilidade de se fabricar um cidadão. A lógica, mesmo que desafiadora, é justa e necessária no mundo em que vivemos. Mas, infelizmente, um filme - objeto limitado por uma duração, por escolhas dramáticas e por um olhar específico - tem a tendência em fazer das coisas mais bonitas uma busca por soluções imediatas e por destinos derradeiros, incorrendo, não raro, no rebaixamento de seus temas e em um humanismo infantil e em um falseamento atroz de questões sérias.

A seqüência que faz contraste entre Roberto e o outro menino de rua apelidado de "cabelinho de fogo" (que invade a casa da pedagoga) é abjeta porque contrapõe o que acaba, por fim, considerando decência e barbárie. É o modo que a certa altura o cineasta usa para distinguir dois estados do garoto. Do que é visto como barbárie, é preciso manter distância. E isso, se torna mais grave ainda quando Roberto está na fila do estádio e vê a polícia revistar quem entra. Ele fica com medo, mas ao passar pelos guardas se sente muito bem em não ser mais uma ameaça, e passa variadas vezes pelos gambés. É quase uma promoção: ele se integrou.

Luiz Villaça fez seu melhor filme (e inclusive, até agora, o melhor filme do festival), mas isso diz pouco para um cineasta que tem um currículo de longas nada invejáveis. A sensibilidade é constantemente sabotada por um mecanismo perverso: o que em princípio parece a luta para um garoto se livrar da miséria e tomar seu destino nas mãos, se torna o exercício de enquadrar e domesticar o menino Roberto Carlos, transformá-lo em cidadão limpo e respeitável. Deixa a fábula picaresca para se transformar em conto de fadas. E que não se venha dizer que é baseado em fatos reais, porque a vida conta mais com a opacidade das coisas do que respostas categóricas. O Contador de Histórias está longe da vida e distante do potencial que a ficção tem em questioná-la.

Já o filme de Nelson Hoineff busca a qualquer custo (ou melhor, às custas de Paulo Francis) procedimentos que gerem efeitos amplificados das características que tornavam Paulo Francis um personagem, sobretudo. Antes da sessão, Hoineff disse que seu filme visava fazer um painel das "várias faces de Paulo Francis". Ora, pra dizer que Paulo Francis tinha várias faces só mesmo um relato pessoal de quem conviveu com ele. No filme, só vale se estiver na tela. A imagem que nós, público e leitores, tínhamos dele era uma só: um personagem que se autocriou.

Na TV, ele era performático e nos seus últimos anos dava algum sentido à confraria de idiotas chamada Manhattan Connection, porque sempre aderiu à performance como único meio de não se conciliar com as impressões mais ralas e superficiais das coisas, seja à esquerda ou à direita. Intempestivo como personagem, exagerava nas tintas e era muitas vezes incoerente - o que, sabemos, faz parte do mito, mas não o exime de nada. Esse é o Paulo Francis personagem, aquele que, não raro, víamos metido em situações um pouco mais sérias do que ele mesmo imaginava ou queria. Entretanto, é no paradoxo de Francis que Hoineff realiza sua estética da chacota e, maquiavelicamente, faz desse mesmo paradoxo do personagem, uma contradição pitoresca. O diretor trata de esgotá-lo e transformar seus entrevistados - entusiastas ou desafetos de Paulo Francis - em bodes expiatórios a serviço da legitimação do polemista Francis.

Nelson Hoineff, amigo do homem, decidiu fazer um retrato dele a partir de depoimentos de conhecidos e imagens de arquivo. É nas somas de imagens de arquivo de Paulo Francis, na cadência entre seqüências de tons diferentes, nas oposições entre entrevistas e no dado emotivo das lembranças dos entrevistados que o diretor constrói (palavra ausente no debate celebratório aqui em Paulínia) uma peça que se exime de abrir mão de possibilidades (e fazer escolhas) que não tenham um efeito instantâneo.

É questão, portanto, de observar as operações. A oposição entre as entrevistas de Diogo Mainardi (anão polemista, suposto herdeiro de Francis) e Caio Túlio Costa (motivo de saída de Francis da Folha), transforma esse segundo em um simplório patético perante a acidez do interlocutor (Mainardi) que Hoineff criou na montagem. Assim como na entrevista com Sergio Augusto, em que o seu cachorro no canto do sofá (e do plano) fica deitado de barriga pra cima. O diretor faz do jornalista Sergio Augusto coadjuvante do cachorro, desviando a atenção da entrevista (que em princípio seria o interesse da cena) para uma oportuna gracinha consciente do diretor. O que isso tem a ver com Paulo Francis? Nada, absolutamente nada.

Transformar o pitoresco - não só de Paulo Francis, mas de qualquer imagem que dispôs como princípio norteador do documentário - é não ir além da superfície dessas imagens, é abrir mão de qualquer responsabilidade que elas em si trazem. Não é questão de usar a moral corrente para se falar do filme (declarar simplesmente que isso pode e aquilo não pode, que isso ou aquilo é imoral ou antiético por si só), mas pedir que haja ao menos um valor sobre o qual o cineasta trabalhe e que revele o limite que o cinema tem. Todo grande filme - sem exceção - é uma reflexão sobre seus limites, sobre o limite do cinema, uma arte (e uma técnica) em que não se pode e nem se consegue fazer tudo. Tendo isso, Caro Francis está longe de ser um filme ao menos medíocre. É torpe.

Julho de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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