in loco - II festival de paulínia
Dia 6: Quatro lições sobre o equívoco
por Francis Vogner dos Reis

Lição 1: O presente, este ingrato

No cinema é fácil compreender a necessidade de se contar histórias que tenham uma utilidade especifica, uma contrapartida social, seja ela a de alertar as consciências ou trazer à tona histórias de patrimônios ameaçados pelo tempo. A Máquina do Tempo, de Marcos Craveiro, é um documentário de curta-metragem da região de Campinas que revela a história da preservação de trens na região e as viagens turísticas que são realizadas entre Campinas e Jaguariúna, assim como o guia mirim que é tarado pelas locomotivas. É um catálogo de trens e um relato sobre o papel que eles exerceram no passado.

Acontece que A Máquina do Tempo é um documentário tão burocrático e simplório em sua parcimônia formal que o tédio é um dos seus menores problemas. O filme quer mostrar o passado (fotos, imagens de arquivo, gente falando de como as coisas eram) e o único dado real do presente é o garoto que trabalha no trem turístico e que só é usado como uma espécie de guia para o documentário. É uma má reportagem, não um filme. Passar antes do documentário de Manoel de Barros é constrangedor, é como se a sessão sugerisse que o poeta é também peça de museu. É uma cautela que a desventurada curadoria deveria ter.


Lição 2: O poeta é o escritor

Se há uma qualidade em Só Dez Por Cento é Mentira, de Pedro Cezar, é se voltar exclusivamente à obra de Manoel de Barros e trazer de sua biografia (a biografia real, porque, segundo o filme, há a "biografia inventada") só o que é fundamental para compor um perfil de poeta e poesia. Existem intenções de uma nobreza fundamental. Só que sabemos que intenções como gênese de projeto não dão garantia alguma de bom resultado estético. Ou seja: Só Dez Por Cento é Mentira é cuidadoso em seus princípios, atabalhoado em seus meios e tímido em seus resultados.

Acontece que a busca de imersão poética no universo poético do poeta Manoel de Barros gera momentos de embuste poético. As imagens com as crianças brincando, as ruínas, as intervenções de trechos de poesias de Manoel de Barros, correm na contramão do esforço poético de Manoel de Barros, que, apesar de possuir um onirismo latente, abre mão da abstração poética para dar forma às coisas que a razão não encampa. Já esses elementos poéticos cinematográficos de Só Dez por Cento é Mentira tendem a uma abstração e a uma beleza poética (entenda-se aqui poética como beleza que não se expressa em imagens) que acaba por trair o personagem. Fazer imagens poéticas no cinema tende à abstração. E como toda imagem cinematográfica é concreta em certo aspecto (procura dar corpo às coisas), intenções poéticas são puro vapor.

O filme encontra depoimentos interessantes nos artistas plásticos e amigos de Manoel de Barros. Ao dar substância às imagens, torna uma série de figuras poéticas (como o esticador de horizonte) em imagens concretas. Ai reside uma contradição interessante, porque acusa a impossibilidade da tradução de um universo poético-literário em imagem concreta. Em certa medida é irônico, mas não parece fascinado ou interessado na potência da contradição.

O documentário de Pedro Cezar encontra sua razão de ser num dado muito simples: nas imagens do próprio Manoel de Barros. O resto é equívoco. Não que os depoimentos sejam reveladores em termos de informação (essa não é a questão), mas eles desautorizam toda a construção do restante do filme. O autor e sua poesia não podem ser traduzidos ou vistos com a consciência que se está transformando aquilo em "cinema". O valor aqui está na objetividade da fala do poeta, a única maneira de se aproximar, minimamente, da gênese de sua poesia.


Lição 3: A festa da menina morta

Na festa de aniversário da filha aparece só uma amiguinha. A partir disso instaura-se um mal estar geral, só as meninas parecem alheias e à parte. Inclusive, a filha aniversariante é uma eminência parda somente.

Em Nesta Data Querida, de Julia Rezende, a crise é o mal estar da mãe, um misto de solidão e sentimento de culpa. O mecanismo é o constrangimento gradual e em paralelo, o quase desinteresse da criança caracterizada com um distanciamento que fica entre o cadavérico e o desinteressado. O curta é um exercício de observação do constrangimento da mãe. Se o foco e o motivo de ser é o constrangimento dos personagens, o filme dá a sua sentença e não consegue muito mais do que criar situações patéticas e personagens que já começam esgotados. Nasceu morto.


Lição 4: Estratégias da má consciência

Se hoje, no cinema brasileiro, existem desastres dos mais variados estratos, um deles continua sendo primordial, apesar de mais tímido em tempos recentes. A má consciência. É como se não fosse possível fazer um filme sem que ele fosse atravessado pelo fantasma de que a ficção sempre está "doente do mundo". O diretor José Joffily é dessa turma. Não há um filme seu em que a sua responsabilidade pelo estado das coisas no mundo não apareça elevando o tom de seus dramas com o intuito de deixar tudo às claras, em conflitos um tanto convulsivos.

Acontece que Joffily gosta de thrillers: A Maldição de Sanpaku, Achados e Perdidos e, agora, Olhos Azuis. O problema é que ele não gosta o bastante, pois ao invés de se aplicar ao filme, buscando a imersão necessária que o filme de gênero pede, ele sobe o tom sistematicamente para deixar claro que a crise dos seus personagens é necessariamente a crise de seu mundo (trabalha na chave do sintoma social como determinante em qualquer relação e ação), polarizado entre a injustiça e a justiça, a inocência e a culpa. Em Olhos Azuis o diretor concentra o filme em dois tempos: um é a o trajeto do americano Marshall por Pernambuco procurando uma garota, o outro se refere ao seu passado, quando agente do Departamento de Imigração em um aeroporto dos Estados Unidos.

Quando o filme começa, parece que Joffily consegue se interessar com algum entusiasmo pelos personagens e as relações no departamento de imigração. Algo semelhante a um filme policial B americano no que há de melhor: coloquialidade e economia da ação. O problema é que, homeopaticamente, as seqüências de sua busca por uma garota pelo interior do Pernambuco (que seriam, na história, anos depois das cenas do departamento de imigração) visam ser um trajeto de busca de sentido. É justamente aí que vemos vir à tona o velho José Joffily, com seus conflitos de temperatura bastante elevada, como quando o personagem de Irandir reage ao agente de imigração. Esse desleixo dramático é fruto de um outro anseio, mais sério, mais grave e mais profundo: a necessidade de procurar um valor alheio ao filme para justificá-lo. E esse valor passa, obrigatoriamente, pelos contrastes e fronteiras no mundo e entre as pessoas. Não acredita em uma coisa (o cinema) e não sabe como dar vazão à outra (a questão social). Além de mau artesanato, é pura demagogia.

Julho de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta