in loco - IV festival de paulínia
Dia 1: O
peso do artifício
por Raul Arthuso
Corações
Sujos, de Vicente Amorim (Brasil, 2011)
A escolha de Corações Sujos como filme de abertura do IV
Festival de Paulínia aponta para a vocação industrial do projeto
do pólo cinematográfico local (que co-produz boa parte dos filmes
a serem exibidos aqui, inclusive este). Encarado como uma obra
de grande potencial de público, no entanto, o filme padece de
um problema vital para o contato direto com o espectador: a identificação
deste com um protagonista e sua visão ao longo da trajetória.
O livro de Fernando Morais aborda, por meio de um relato mais
historiográfico que ficcional, a história da Shindo Renmei, uma
organização nacionalista da colônia japonesa que negava a derrota
do Japão na Segunda Guerra Mundial. A construção do filme tratou,
pelas características do material no qual se baseou, de criar
a parte dramática, escolher personagens com uma trajetória de
transformação à qual se prender durante a narrativa e tentar
expor seus conflitos.
Mas
há uma questão de ponto de vista aqui. O filme é construído a
partir de três personagens: Takahashi, um membro da Shindo que
começa a duvidar de seus ideais; sua esposa Miyuki e a menina
Akemi, cuja família será atingida pela ação da organização. Grudar
o ponto de vista do espectador com o do personagem parece fundamental,
contudo, a montagem paralela dessas trajetórias acaba diluindo
a identificação pelo pouco tempo que as cenas optam por se deter
a observar o contexto dessas pessoas, deixar que seus conflitos
internos floresçam, permitir que suas emoções falem direto às
do espectador. Enfim, responder uma questão básica para criar
a identificação: quem são essas pessoas? A saída escolhida
foi a do uso de uma série de artifícios para escancarar as sensações
das personagens, como o exagero de certas cenas por gestos grandes
e às vezes óbvios (como o desespero de Miyuki, representado por
sua “explosão” contra o milho que dá às galinhas todo dia), a
decupagem das cenas que muitas vezes parecem colocar a câmera
fora do tom das atuações, e, mais notavelmente, o uso incessante
da música – que, para além de sua grandiloqüência, funciona como
legendagem das intenções das cenas.
O
elemento que acaba sacrificado dentro deste quadro é o contexto
histórico. Não os fatos, datas e números, pois isso alguns diálogos
e algumas cartelas dão conta, nem somente as características de
época, reproduzíveis pelos cenários e figurinos. Trata-se de algo
mais intangível, que escapa às trajetórias individuais e transfere-se
ao aspecto coletivo dessas pessoas - elemento que as insere em
determinado tempo/espaço. O filme histórico produzido no Brasil
desde a última década, em geral, tende a apagar este elemento
como aresta da narrativa dramática, transformando-o em acessório
para alijar a trajetória subjetiva do protagonista do peso da
História – algo já notadamente realizado em Olga e Zuzu
Angel, onde revolução comunista e ditadura militar, respectivamente,
se tornavam conceitos plainando ao redor das pessoas, que, na
verdade, eram agentes históricos via outros ideais, no caso o
amor romântico e a maternidade.
O
sabor do livro de Fernando Morais é tentar descrever a distopia
de parte de uma comunidade em relação à realidade como forma de
transplantar para o exílio uma idéia de nação idílica, como uma
retomada melancólica do país amado do qual se sente falta e que
não voltará nunca mais, que se exprime pela violência. Em Corações Sujos,
logo no início, o grupo da Shindo Renmei é atacado por um pequeno
grupo militar brasileiro (principalmente um soldado que tem em
sua caracterização alguma coisa de Hitler)que os humilha, usando
a bandeira japonesa como pano para lustrar os sapatos. Acontecendo
antes mesmo de qualquer ação do grupo, isso torna sua ação inicial
mais reativa que orgânica a um pensamento latente de uma coletividade.
Essa sensação se intensifica quando levada em conta a figura do
militar Watanabe, caracterizado como líder do grupo e tratado
como um vilão de fato no filme, já que é ele quem toma as decisões
ao “manipular” os membros da colônia (e é sintomático que Takahashi,
ao tomar consciência disso, não tente nada para desbaratar o grupo,
mas sim parta para o duelo com Watanabe).
Ao
transformar uma questão da coletividade em algo movido pela vontade
individual, o filme abre mão de entender o contexto, causando
o engessamento do retrato de época. Isso fica claro se pensamos
o quanto a violência no filme é negada enquanto forma política:
as ações do grupo funcionavam com um harakiri (o suicídio
motivado pela perda da honra) imposto ao membro da colônia julgado
com um “coração sujo”, o que traz um elemento cultural aos crimes
do grupo. Os assassinatos no filme são, por outro lado, acompanhados
de uma forte reflexão moral e sofrimento, mais de quem mata do
que de quem é morto. Essa vertigem coletiva da Shindo,
talvez sintoma de uma questão maior da diáspora, é apagada da
dramaturgia do filme, a não ser por alguns planos que distorcem
as bordas do quadro, causando um efeito de estranhamento repentino
com o que é visto. Mais uma vez, a opção de linguagem é pelo artifício.
Julho de 2011
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