in loco - IV festival de paulínia
Dia 3: Personagens
e(m) seu lugar
por Raul Arthuso
Rock Brasília
- Era de Ouro, de Vladimir Carvalho
Meu País,
de André Ristum
O cinema brasileiro dos últimos anos mantém uma
relação muito ambígua com o lugar de origem. Se, por um lado,
a produção se descentralizou e o lugar-base é elemento fundamental
das narrativas, há uma idéia corrente de que uma história só tem
amplo alcance no público se universal, deixando as marcas culturais
do lugar como acessório visual da narrativa.
Não
é apenas por ser um documentário que Rock Brasília – Era de
Ouro estabelece uma relação próxima com a capital federal,
mas principalmente porque o foco de interesse do filme está na
genealogia de um encontro neste local. O verdadeiro objeto de
olhar do filme é a reunião dos jovens filhos de funcionários públicos,
professores e diplomatas naquele momento específico e entender
como isso desembocaria no movimento do rock brasiliense em meados
dos anos 80. Tanto que o filme inicia com a montagem de entrevistas
dos pais dos roqueiros contando como foi a chegada em Brasília,
estabelecendo já de princípio essa relação de transitoriedade
da cidade – algo que depois será reforçado pela migração das bandas
Plebe Rude, Capital Inicial e Legião Urbana para o Rio e São Paulo
para gravarem seus discos.
Ao
filme, mais importante que estabelecer quais bandas fizeram o
que, interessa criar relações: como os pais encaravam as aventuras
adolescentes dos filhos, como as bandas foram se formando a partir
da reunião de garotos que pensavam igual entre si, mas diferentes
em relação à maioria, e como tudo isso se relacionava com as características
da cidade. Assim, é a particularidade do lugar e as relações pessoais
nele, um movimento de entender um momento, um acontecimento, que
move o filme. O ponto alto dessa relação é o show da Legião Urbana
no estádio Mané Garrincha em 1988, quando a banda estava no topo
e uma série de conflitos entre Renato Russo e a platéia levou
o show a ser um desastre (com Russo verbalmente recusando a cidade
em um acesso de raiva).
Essa sequência, se importante no contexto do filme,
deixa exposto o grande problema da construção formal de Vladimir
Carvalho. A montagem costura as imagens de arquivo do show com
uma polifonia de entrevistas que historicizam o momento, não deixando
que as imagens falem por si. Este gesto de descrever a cronologia,
que aparecia bem timidamente antes, passa à frente após a sequência-chave
do show, dando importância a algo até então externo ao filme.
E a explicação cronológica opta pelo didatismo, quebrando um tanto
a relação prazerosa do espectador com o filme.
O
didatismo, esse artifício que invade o filme de Carvalho, é procedimento
caro a Meu País. As escolhas de linguagem passam pela funcionalidade
e tornam-se códigos rapidamente identificáveis, com o objetivo
claro de transformar a experiência do espectador em algo suave,
por mais intenso que possa ser o drama: a fotografia dessaturada,
a trilha, o peso dos objetos. Tudo para dar uma sensação de profundidade,
mas que tem suas estruturas narrativas muito claras e simples,
como a presença da cena em que Tiago (Cauã Reymond)
e Giulia (Anita Caprioli) passeiam sozinhos para que ele pergunte
se ela e Marcos nunca quiseram ter filhos, logo antes da cena
em que é revelada a existência de Manuela (Débora Falabella),
a irmã deficiente mental de Tiago e Marcos. Ou ainda quando Manuela
vê a foto de Tiago e Marcos quando jovens e descreve cada personagem
em uma frase, talvez para aqueles que ainda não entenderam.
Porém, mais importante é a relação com o lugar.
Marcos é um empresário que vive na Itália e retorna ao Brasil
após a morte do pai. E, afinal, que país é esse ao qual
o filme se refere? É o “lugar universal”, como dito no início
do texto, um lugar acessório para a trama. Os conflitos de Marcos
em sua volta ao país são todos de ordem interior: o luto, a família,
a solidão, as memórias da infância, o afeto fraterno, o vício
do jogo de Tiago, a empresa falida do pai. O personagem volta
ao Brasil (a São Paulo mais especificamente), mas grande parte
das cenas se passa nos limites da mansão do pai ou no internato
de Manuela, locais que parecem desgrudados do lugar onde supostamente
o filme se passa. Não há qualquer conflito com o lugar; há sua
simples abstenção, transformando a metrópole paulista, literalmente,
em plano de passagem.
Como
algo muito marcado no cinema brasileiro recente, o herói não existe
sem seus pais. É sintomático que o problema de Tiago com as dívidas
de jogo não se resolva na tela, pois o importante é que o heroísmo
de Marcos se concretize, cumprindo seu destino de substituir o
pai para que as relações afetivas se normalizem e então tudo fique
bem. E aí ecoa o filme de Vladimir Carvalho, pois lá há uma relação
familiar interessante: o pai de Fê Lemos, baterista do Capital
Inicial, tenta convencer o filho a largar a carreira musical;
este quase aceita o conselho, mas insiste na música, contrariando
o pai, e faz sucesso com a banda. Em dado momento da entrevista,
o pai de Fê é perguntado sobre o que ele achava agora, e ele se
emociona, incapaz de responder, mas deixando claro que estava
errado. Se em Rock Brasília,
a relação paternal é ambígua, feita de discordâncias, descobertas
e reflexões, mas cheia de afeto também, em Meu País, o respeito
e solenidade com o pai suplanta qualquer ambigüidade na relação
com o mundo.
Julho de 2011
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