in loco - IV festival de paulínia
Dia 7: O poeta e a mensagem
por Raul Arthuso
Febre do Rato,
de Cláudio Assis
Uma certa esquizofrenia definia
os dois primeiros longas de Cláudio Assis, notável pela briga
de duas grandes pulsões: mostrar o lado escroto do mundo e, por
outro lado, mostrá-lo como algo belo. Nos primeiros minutos de
Febre do Rato, podemos pensar que “a fera foi domada” e
que, sob influência de seu fotógrafo, Cláudio Assis transformou-se
afinal num esteta. Ao contrário. O filme traz novos elementos
para a obra de Assis, que se harmonizam nos conflitos com sua
sordidez já conhecida, e tornam esse o seu filme mais potente.
Vários
desses aspectos novos no cinema de Cláudio Assis poderiam ser
pontos de partida do crítico, mas aqui neste primeiro olhar cabe
destacar dois bastante evidentes como vetores principais. Um deles
é o cinema como consciência: Assis se reporta à história do cinema
brasileiro. Belair, Cinema Novo, o Cinema Pernambucano dos anos
90. Mais que simplesmente citá-los ou usar do fetiche, o filme
parece embrenhado por seus valores de atitude. Nesse sentido,
Assis é capaz aqui de produzir momentos de verdadeira catarse,
seja para dentro, como na cena do mijo de Eneida; seja para o
exterior, como na sequência do Sete de Setembro. Impressiona,
em suma, que Febre do Rato tenha um plano – em que as personagens
transam e se banham numa caixa d’água filmada de cima frontalmente
– que nos diga tantas coisas (pela violência do sexo, a nudez
de Maria Gladys, a dança dos corpos naquele pequeno espaço e o
inusitado da situação), enquanto um plano quase idêntico em Os
3 não diga coisa alguma.
O
outro elemento é a composição de Zizo, o personagem vivido por
Irandhir Santos. Uma parte das personagens de Assis em seus filmes
anteriores se destacava pela doçura e inocência, que as tornavam
vítimas da outra parte das personagens, os sórdidos, os cruéis.
Zizo é, nesse sentido, único: transita de um extremo a outro sem,
contudo, ser limitado em nenhum deles e mantendo todos em convivência.
É como se neste personagem uma série de forças vivessem uma batalha,
onde eventualmente uma se destaca; porém, todas estão lá. Por
isso é ele tão vivo, ativo, expressivo. Essa medida vem, em grande
parte, pelo desempenho de Irandhir Santos. A altivez de sua figura
legitima os sentimentos da personagem, seus vícios, suas fraturas,
sua boçalidade e, principalmente, sua sinceridade perante a vida.
O personagem ganha em Irandhir a materialização do líder mártir
que a cultura brasileira parece cultivar: Gregório de Matos, Glauber
Rocha, Chico Science. Cláudio Assis, via Zizo, via Irandhir, fala
do ser-Brasil.
Não
é por acaso que Waly Salomão também vem à mente: Zizo vive
a vida como mise-en-scène. Sua poesia não está apenas nas
palavras – inclusive porque a poesia que Zizo recita nem sempre
convence – mas nos gestos, na maneira de posicionar-se perante
o grupo, no agir. Esse filtro, na verdade, faz a volta para outro
poeta emblemático da cultura brasileira: Paulo Martins, personagem
de Jardel filho em Terra em Transe.
Os dois
acreditam na ação acima de tudo e buscam trazer de volta o sentido
grego da palavra “poesia” – ligada à ação, à atitude. Em Terra
em Transe, Paulo Martins é um revolucionário político que
quer mudar o mundo (e acaba reprimido por ele, o que aniquila
sua existência); em Febre do Rato, a poesia é inquietação,
agitação, levar as coisas ao limite, viver a mise-en-scène.
A sensação, inevitável nesse primeiro contato
com o filme, é que Febre do Rato diz muitas coisas, realiza
plenamente parte delas, outras menos, mas de que é preciso depois
gastar mais texto com a obra (algo também sentido em relação a
Trabalhar Cansa). É fácil sentir que se trata de um filme
fascinante. O fascínio surge em grande parte do que não se deixa
entender pela nossa pulsão de enquadrar as coisas numa lógica.
E, assim como Zizo, é bom gostar disso que não se entende.
* * *
À Margem do Xingu – Vozes
Não Consideradas
Fica evidente em À Margem do Xingu uma
vontade de ouvir pessoas ao redor da área que será afetada pela
construção da usina de Belo Monte. Porém, a vontade de dar voz
não se concretiza de fato, e a denúncia de que o processo todo
não é exposto decentemente à população local desemboca em algo
burocrático.
Isso
parece resultado da opção de olhar primordialmente para o lado
técnico e descritivo da história, que se materializa na “voz de
especialista” do filme. Há inclusive uma pequena seqüência dos
currículos: montagem de planos onde aqueles que já foram entrevistados
contam o que são, onde estudaram, sua especialidade, a linha de
pesquisa e o trabalho atual. A voz do outro, ou melhor, a voz
no local de denúncia parece esquecida. A população local aparece
apenas como lideranças dos movimentos ou em poucas frases para
dar substância ao conteúdo denunciado. A “voz de especialista”
é tão forte para o filme que as populações indígenas entram timidamente
no jogo, apenas através de duas pequenas falas de caciques e numa
personagem advinda de uma tribo, mas “civilizada” pela universidade.
Assim como essa “voz especializada” faz com o
tom da denúncia, o filme, o tempo todo, normatiza seu objeto,
sem brechas para abrir-se ao contrário. O filme se torna burocrático,
pois sua polifonia é artificial, vem do palanque ou da sala de
estudo. Num dos poucos momentos soltos do filme, alguns trabalhadores
falam sua opinião sobre a barragem enquanto bebem e jogam cartas,
sem respeito pela vez de cada um, como numa discussão de bar.
Curiosamente, a maioria deles é a favor da usina.
Julho de 2011
editoria@revistacinetica.com.br
|