eletrônica - debate
A Pedra do Reino: A opera mundi de Luiz
Fernando Carvalho por Ilana Feldman
Sabe-se
que toda obra inventa seu autor. Hamlet inventou Shakespeare, Quixote inventou
Cervantes, Ulisses inventou Homero e Pedro Dinis Ferreira Quaderna, tendo devorado
– antropofagicamente – Shakespeare, Cervantes e Homero, inventou Ariano Suassuna.
Se todo escritor é então escrito pelos livros que pensa estar escrevendo, o mesmo
se pode dizer de alguns cineastas e diretores, cujas obras não apenas escrevem
um mundo dotado de plena autonomia como lhes inscrevem a própria vida.
Falar
da obra ou do mundo de determinado diretor não significa, portanto, pensá-lo como
um sujeito simplesmente criador e controlador das formas e sentidos por ele produzidos.
Significa, antes, pensar a autoria como efeito desse mundo, efeito de suas
regras, seus códigos, seus símbolos, sua luz, sua música e seus mitos. Um mundo,
que, na medida em que incorpora uma multiplicidade de percepções, experiências
e afetações, acaba por devorar aquele que pensa tê-lo criado. Tal
é o caso do mundo inventado pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, uma espécie de
reino ancestral, cujas questões da origem, da terra e da família se atualizam
por meio de corpos e desejos que personificam a necessidade da narrativa. Assim
tem sido desde suas primeiras obras audiovisuais para TV, passando por seu filme
Lavoura Arcaica (a partir do livro homônimo de Raduam Nassar), pela série
Os Maias (a partir do romance homônimo de Eça de Queiroz) e, de forma ainda
mais evidente, pela série Hoje é dia de Maria, em suas duas jornadas (a
partir da obra de Carlos Alberto Soffredini), e pela microssérie A Pedra do
Reino (a partir do Romance d’A Pedra do Reino de Ariano Suassuna).
As duas jornadas de Hoje é dia de Maria e a microssérie
A Pedra do Reino compõem, não por acaso, uma espécie de “trilogia da terra”,
cujo elo narrativo dá-se não apenas por meio do eixo temático desempenhado pelas
“questões da terra”, como, sobretudo, pela forma com que esses dois universos
audiovisuais são trabalhados. Se a narrativa e a presença de personagens que se
narram – sempre em busca de uma filiação, de um pertencimento e de uma vinculação
à vida através da linguagem, do sonho e da deriva – constituem o núcleo vital
da trilogia, há uma diferença sutil no papel ocupado pela própria “terra”, seja
ela um espaço material, uma instância temporal ou uma miríade de míticas miragens. Em
Hoje é dia de Maria (ao lado) trata-se de uma terra-mãe, feminina, de onde
se parte e aonde se quer chegar – situação em que a jornada da protagonista Maria
nos remete à parábola do judeu errante que, perguntado de onde vinha e pra onde
ia, responde singelamente que está vindo de casa e indo pra casa. Já em A Pedra
do Reino, a acolhedora terra-mãe, presente em sua ausência, dá vez a um austero
sertão-pai, ausente em sua presença, o qual deixa de ser propriamente um lugar
para transformar-se em condição existencial do protagonista Quaderna. A errância
agora é interiorizada no âmago desse herói a um só tempo trágico e picaresco,
bravio e covarde, ordinário e delirante, desmesurado e oscilante. A errância não
se dá mais no espaço, como em Maria, mas através do próprio fluir e fruir
do tempo, agora descontínuo, não-cronológico e desespacializado, como camadas
de memória que ora se agregam e justapõem e ora se chocam.
Pensar
na errância como essa condição espacial, existencial e temporal indeterminada,
como um entre-lugar em que habitam personagens em trânsito ou em transe (aqui,
além de Maria e Quaderna, lembremos também de André de Lavoura Arcaica),
é, sobretudo, pensar na condição da própria narrativa. No mundo de Luiz Fernando
Carvalho, marcado pela permanente tensão entre palavra e imagem, narrar não significa
simplesmente tecer uma história ou se fazer compreender. Narrar implica produzir
um universo, construir uma cosmologia, estabelecer elos, desenrolar novelos e
entabular afetos. Narrar requer uma organização das formas e dos sentidos, mesmo
que a partir de sua aparente desorganização. Pois desprovidos de sentidos, ainda
que aos estilhaços, sabemos que tudo o que há é a aridez do deserto. Se
a errância é então condição da narrativa, esta será entretecida por Maria e Quaderna
a partir da temática do desengano, cara à arte barroca. Porém, não se trata
aqui do desengano como simplesmente desencanto ou desilusão, nem mesmo em sua
acepção cristã de desesperança na salvação. De modo contrário, a trajetória de
des-engano desses dois personagens, guardada as devidas diferenças, se
apresenta como um não se deixar enganar por quaisquer verdades que não sejam verdades
da narrativa e da ficção. Para
Maria e Quaderna, assim como para o movimento Barroco, seus poetas, dramaturgos
e artífices, a vida é feita de sonhos, ilusão, sedução, cegamento e autocegamento.
E o mundo, por sua vez, é um teatro cuja revelação de sua maquinaria ou engrenagem
não pressupõe o descortinar de uma verdade, muito menos o abrir mão do artifício
e da ilusão. Na opera mundi em que habita Maria ou no palco mambembe em
que Quaderna narra a epopéia de sua família, o teatro recobre todo o mundo, seja
o mundo político ou o mundo metafísico. Com isso, não significa dizer que se trata
de um simulacro ou de uma falsificação, mas da crença de que nada existe aquém
e além da encenação.
É justamente por conta desse sentido
totalizante, autônomo e barroco de encenação que não é possível falar em “adaptação”
e “representação”, simplesmente porque ambas as palavras, bastante retrógradas
e simplórias, partem do princípio platônico de que haveria sempre um referente,
um modelo a ser copiado, transposto ou mimetizado – crença que sempre pautou o
primado do naturalismo e do melodrama no âmbito da produção televisiva. Se
o teatro moderno e a crença no homem como ator nascem no Barroco é porque não
haveria assim nada por trás do pano, nenhuma verdade transcendente como garantia,
mesmo que essa verdade seja, contraditoriamente, buscada e evocada, conscientemente
ou à revelia. Muito antes do Barroco e ainda no período medieval, Giotto pintara
seu “Juízo Final” com um “detalhe” fundamental: o anjo que, no céu, recolhe o
pano da pintura, enrolando-o como se fosse um papel de parede, não revela a “verdadeira”
realidade, isto é, uma imagem do Paraíso, mas apenas um portão celestial, que
não garante a entrada a nenhum lugar, quem sabe somente a infinitos outros portões
e camadas de ilusões. Isto para dizer que o imaginário medieval, com suas contradições
e conflitos, será reelaborado pelo Barroco e antropagicamente fagocitado pelo
projeto estético Armorial que, tendo Ariano Suassuna como figura central, fundirá
à tradição do Barroco ibérico o romanceiro popular, na tentativa de fundar uma
linguagem nacional.
Na
opera mundi de Luiz Fernando Carvalho, tanto em Hoje é dia de Maria
como, mais radicalmente, em A Pedra do Reino, a encenação contempla, incorpora
e devora, almejando totalizar, todas as formas de manifestação artística, que,
ao gosto do barrocco, cujo sentido literal é “acumulação”, une e mistura
cinema, teatro, poesia, pintura, circo, ópera, literatura, romance, odisséia,
sátira, tragédia, picardias, cordel, maracatu, papangus e novelas de cavalaria.
Do popular ao erudito, da artesania à tecnologia, da ancestralidade à busca da
nacionalidade, a mão barroca e o “estilo régio” de Luiz Fernando Carvalho orquestram
excessos, intensidades, contrastes, júbilos sem limite, jorros declamatórios e
diversos registros e linguagens.
Sempre citando, parafraseando,
parodiando, transformando e se esquivando de qualquer modelo fixo e unitário,
a megalomania do “rapsodo” e “diacevasta” Quaderna – cujo empenho é escrever uma
epopéia sertaneja e mestiça, obra definitiva que reúna todos os cantos, histórias
e estilos de nossos poetas e romancistas – sintetiza a própria “megalomania” de
seu autor, Ariano Suassuna, bem como a “megalomania” de seu outro criador, Luiz
Fernando Carvalho. Nesse sentido, o próprio projeto Quadrante,
em que se insere a microssérie A Pedra do Reino e que ainda contará com
outras três criações audiovisuais a partir de obras literárias e ficcionais (cada
uma filiando-se a uma região do país), diz respeito a uma espécie de projeto “armorial”
de produção e mapeamento de um imaginário nacional. Se tal projeto é fantástico,
já que o imaginário não é algo abstrato, mas a câmara de produção da realidade
por vir, não esqueçamos que, para a Rede Globo, a produção desse imaginário, mesmo
que a partir de transgressões e invenções estéticas, reverte-se em “responsabilidade
social” e ampliação de seu projeto de unificação do país, cujo slogan tem
sido “Brasil. A gente se vê por aqui”. A contradição que se coloca é que, ao capturar
justamente aquilo que resiste a suas formas e padrões estéticos hegemônicos, a
Globo alimenta sua própria “desintegração”, mesmo que infinitesimal - e não menos
potente por isso. As três instâncias que atravessam A
Pedra do Reino (a forma armorial do romance, o desejo epopéico e o “estilo
régio” de Quaderna e a linguagem híbrida, armorial, barroca e régia da série)
articulam-se em uma coerência absoluta, como se a própria opera mundi de
Luiz Fernando Carvalho levasse ao limite da radicalidade o projeto estético postulado
e desenvolvido por Ariano Suassuna. Contudo, se Quaderna é um tipo personagem
galhofeiro, picaresco, trágico e oxímoro (quando suas contradições chegam a um
tal grau de intensidade em que já não é possível pensar de um modo cognoscível),
a série acentua sua tragicidade e dramaticidade, adotando um tom mais grave, visceral
e passional. A
partir do privilégio dos tons ocre, da música armorial e oriental, das caracterizações
vinculadas ao medievo, da cenografia mourisca e, sobretudo, de uma montagem labiríntica,
espiralada e em transe, A Pedra do Reino parece se vincular esteticamente
à percepção de mundo menos de Quaderna que de seu primo Arésio, personagem sanguinário,
passional, atávico e violento. Assim como, em Os Maias, a mise-en-scène
romântica vinculava-se à percepção de Pedro, e não ao estilo realista do romance
de Eça de Queiroz.
A violência de A Pedra do Reino não é, evidentemente,
relativa aos sentidos produzidos, mas a uma organização formal que desorganiza
o material, estilhaçando a relação de causa e efeito e o tempo cronológico da
narrativa clássica, através de uma montagem descontínua e “em abismo”. Do mesmo
modo, a violência sensorial se faz presente por meio de cortes abruptos na imagem
e no som, de certas opções e operações de linguagem, como o vínculo a uma imagem
ora impressionista (cujo foco é difuso), ora expressionista (cuja organização
dentro do plano, sobretudo a partir da utilização de closes, distorce ou desfigura)
e, ainda, por meio da utilização de uma luz épica e epifânica, estourada, dourada
ou obscurecida.
Essa
aposta incondicional na experiência estética, como forma privilegiada de percepção,
fruição, comoção e, até mesmo, como forma de conhecimento, acaba por esvaziar,
positivamente, as referências artísticas, literárias e cinematográficas que, de
outro modo, asfixiariam o projeto da série, tornando-o simplesmente um jogo de
caça aos “tesouros”. Por isso, não importa se lá estão Glauber e Eisenstein, Shakespeare
e Cervantes, Giotto e Caravaggio, por exemplo. Antes, o que marca o projeto estético
de Luiz Fernando Carvalho, desde Lavoura Arcaica, é a busca permanente
e desesperada por uma linguagem epifânica, justamente porque a epifania sempre
escapa à linguagem.
Neste impulso de dar palavras e imagens
ao que é fugidio e esquivo, como o erotismo e a fé religiosa, a opera mundi
de Luiz Fernando Carvalho é atravessada por uma religiosidade jubilosa, também
já presente em André de Lavoura Arcaica. Uma religiosidade laica, cujo
templo sagrado é o próprio tempo, em sua duração e intensidade. Em A Pedra
do Reino, três formas de pretérito se justapõem ao presente como lençóis de
passado, os quais fazem da circunstância “atual” da narrativa um momento em que
Quaderna, já velho, narra sua epopéia, atualizando e reinventando tudo o que na
vida está como um “virtual”: suas memórias, mesmo a mais remota e ancestral. No
terceiro episódio, em um dos momentos mais belos e intensos, quando a imagem
obscurece, a música silencia e o tom das interpretações se recolhe, o jovem Quaderna,
com os olhos encharcados, escuta do velho Beato que seu pecado foi querer criar
um mundo que já não existe mais e que, por isso, terá de ser julgado. Esse mundo
habitado por mitos fundadores, fantasias imperiais e desejos de pertencimento
e filiação é o próprio sertão-pai, que, tal como um austero Deus do Velho Testamento,
criou seu mundo e se retirou de cena. “Mataram meu rei”, nos diz Quaderna no último
episódio, comovido, já velho e frágil como um pequenino órfão, antes de partir
tocando faceiramente sua rabeca. A crença fervorosa de Quaderna, Ariano Suassuna
e Luiz Fernando Carvalho revela-se, assim, como esse desejo ancestral de re-filiação,
re-unificação, re-ligação e re-ligião.
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