edição especial curtas brasileiros 2009
O pai com a câmera
por Cléber Eduardo

Perto de Casa, de Sergio Borges (Minas Gerais, 2009)

A onipresença de câmeras em casa e o elogio contemporâneo da espontaneidade, conseqüência dessa presença expandida das máquinas de transformar fragmentos do mundo em imagens, têm gerado uma modalidade específica de narrativa: os filmes de família elevados à condição de filmes para exibição pública. Essa elevação é o X da questão. Porque uma coisa é registrar imagens domésticas, para o âmbito da exibição doméstica, e outra é torná-las pública, exibindo-as em mostras e festivais. Nessa elevação, o vídeo-registro, de caráter amador e afetivo, torna-se obra. E assim precisa ser encarado. É o caso deste Perto de Casa, de Sergio Borges, um dos sócios da produtora mineira Teia.

Se tomarmos outros dois exemplos recentes de filmes/vídeos (Imprescindíveis, de Carlos Magno; Meu Nome é Paulo Leminski, de Cezar Migliorin) nos quais pais apontam a câmera para filhos e procuram extrair deles reações ao ato de serem filmados, temos de cara uma diferença substancial. Naquele outros dois casos, os pais reivindicavam dos filhos uma repetição de suas frases, exercendo um poder sobre eles, mas colhendo deles reação a esse poder, com desfechos distintos em cada situação. No de Magno, o filho perde; no de Migliorin, ganha, fechando a janela. Sem luz, não há imagem. Exemplos de dispositivos com certas regras que, em vez de ordem, estabelecem o descontrole. Sergio Borges lida de outra forma com seus dois filhos diante da câmera. Ele não reivindica nada. Não há exatamente um dispositivo, em busca de algum efeito não controlado, mas uma espera e uma convivência. Ele apenas observa a reação dos dois – mas menos uma reação em relação à câmera, e mais uma reação de um ao outro, sem deixarem de ignorar a câmera. Há relações internas no quadro e não apenas do quadro com o fora dele. Portanto, o jogo de poder, direto com a câmera nos outros dois filmes mencionados, se dá em forma de cena.

As duas crianças entram em atrito a partir do afeto a uni-las e tornam-se aliadas em determinadas situações. Mas onde essas cenas superam o registro e tornam-se frutos de escolhas criativas? Teríamos de encontrar essa resposta na atitude do pai com a câmera. Em um primeiro momento, as imagens, ao reproduzirem a textura de uma visualidade virtualizada (imagem de desenho, segundo uma das crianças), são amalgamadas com a sensibilidade dos filhos. É como se o pai terceirizasse uma opção para seus miúdos. Estamos em um momento no qual não há poder aparente na maneira de filmar, com o pai agindo como um irmão em igualdade com os filhos, como se filmá-los fosse uma forma de participar da brincadeira, mesmo estando acima de tudo observando-a de fora, porém com proximidade.

Quando essa imagem de desenho desaparece, aumenta a distância entre pai e filhos, embora os filhos o tempo todo remetam em olhares e palavras a presença do pai. Eles atuam em cena entre eles e para a câmera (e o pai), ao mesmo tempo, e começam a revelar sem nenhum pudor, em uma brincadeira em um monte de areia, algo de muito íntimo daquela família e também algo de cultural (algumas expressões e a relação com o corpo). Nesse momento, para além do registro de afeto em família, algo transborda. Estamos diante de um rastro de vida mais ampla, que sai da particularidade. Mas é quando a brincadeira infantil torna-se uma operação com algum nível de risco corporal, ainda assim lúdica, que temos uma alteração na dinâmica até então estabelecida. O pai tem de intervir com seu poder, não de quem filma, mas de quem é a autoridade paterna. A constância do improviso e da liberdade de agir das crianças sofre uma interdição motivada pelo andamento da situação. Não é a sociedade e seus valores que regem essa interdição paterna na cena, mas um instinto anterior e ao mesmo tempo superior, que prima pelo bem estar e não pelas regras de boa conduta.

É mais fácil (e muito fácil) ver as situações mostradas na tela como simples registro de família em um momento de lazer, daqueles que poderiam estar no youtube, mas há nesse reino da espontaneidade um senso de narrativa e evolução, de uma construção que não se dá no roteiro, tampouco na montagem (não apenas), mas na própria condução da filmagem e da resposta das crianças a essa filmagem. Ao apontar a câmera para os filhos, Sergio Borges provoca uma reação e mais que, de forma apagada, registrar algo bruto, gera uma relação entre visível e não evidente, que supera a mera relação de um pai com seus filhos. Temos de reconhecer, ainda assim, que o filme está no limiar. Se não se dissipa em uma tendência contemporânea de rarefação das relações e dos sentidos, dos rastros de um mundo além da particularidade extremada em sua subjetividade e em sua naturalidade sem intenções, é porque suas imagens superam a especificidade das situações mostradas. Não há da parte de Perto de Casa um compromisso com a ausência de controle, ou de enunciação, mas de um controle mais flexível e uma enunciação aberta a ser co-enunciada (pelos filhos), sem com isso abrir mão de uma visão de fora da cena para a cena, sem deixar de provocar e fazer parte dessa mesma cena.

Janeiro de 2010

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