in loco - cobertura do Festival do Rio

A Fórmula de Peter Pan (Peterpan-eui gongsik),
de Cho Chang-ho (Coréia do Sul, 2005)
por Cléber Eduardo

Expressão autoral ou fórmula nacional?

A opção por A Fórmula de Peter Pan, em meio a tantos filmes em horários próximos, não foi por conta de seu realizador (Cho Chang-ho), até por se tratar de um estreante. Também não foi resultante de uma carreira internacional do filme, apesar de sua exibição em Sundance e Berlim com boa acolhida dos críticos de vários países. O critério de escolha para vê-lo foi somente por conta da origem coreana; pela curiosidade de se ver algo de um realizador ainda em seus primeiros passos, mas dentro de um contexto de realização bem delineado no panorama mundial: o cinema feito na Coréia do Sul e exportado pelos festivais de cinema internacionais. Filmes coreanos (pelo menos como ficamos habituados a ver nos últimos anos, desde Mentiras) são esquisitos. Ou insólitos. Ou inusitados. Violentos (A Ilha, Old Boy) ou poéticos (A Casa Vazia, Pinceladas de Fogo, O Arco), mas sempre esquisitos, insólitos ou inusitados. Nesse caso, portanto, mesmo nada sabendo sobre a obra, temos uma expectativa.

E ela é atendida: as esquisitices estão todas lá, de forma quase previsível, pouco selvagem, já reconhecíveis como estilo. Portanto, diante de mais um filme coreano esquisito, fica a pergunta: seriam essas situações e personagens à margem da normatização dos comportamentos humanos e das situações cinematográficas uma autêntica reação em grupo dos diretores coreanos diante do mundo, ou uma forma de atender uma demanda de traços já vinculados ao cinema coreano para exportação? São os festivais e distribuidores que correm atrás de filmes coreanos assim (esquisitos, insólitos e inusitados) ou alguns filmes coreanos são assim para satisfazer festivais e distribuidores?

A Fórmula de Peter Pan, independentemente da resposta, não nos surpreende. Ou melhor: a surpresa fica por conta apenas dos primeiros minutos, quando, diante de imagens pouco depuradas, sem senso de composição ou traços de universo singular, não reconhecemos nenhuma característica made in Coréia. No entanto, passadas algumas seqüências, a esquisitice apresenta-se. Dada a premissa de um nadador adolescente cuja mãe está em coma no hospital após ingerir veneno, vemos desfilar pela tela uma sucessão de situações peculiares, nem sempre conectadas dento de uma rede de sentidos claros, deixando significados no ar mesmo em circunstâncias aparentemente metafóricas. Decifrar os pequenos mistérios dessa organização semântica talvez possa minar a beleza ou a força poética de algumas imagens, sem dúvida já situadas entre as mais interessantes dentro da programação bastante mediana desse festival em 2006. E esse interesse resiste à impressão de tais imagens parecerem já bastante formatadas pela tal fórmula coreana de cinema.

Nesse sentido, Cho Chang-ho é hábil: partindo de um universo mais ou menos familiar aos nossos olhos, mantém sua energia – certamente porque, em sua maneira de filmar (com o tripé, com enquadramentos “recortados”, seletivo na escolha do ângulo) e de organizar o material (muito livre dentro de certo esquema), impõe um olhar pessoal.

Temos lá a quase ausência de palavras dos filmes de Kim Ki Duk, algum sinal de “magia” em determinados acontecimentos, uma relação homem-mulher impedida por questões quaisquer, e alguns planos sem nenhuma razão à primeira vista, mas, que, no conjunto da narrativa, têm a função de impedir a estruturação em forma de prosa para fincar a câmera na poesia audiovisual de versos livres.

Mas do que se compõe o universo poético? Basicamente, da vivência de um adolescente entre a quase perda da mãe, a descoberta do sexo e a ausência do pai, tudo em questão de dias ou semanas. Há um senso de impotência no ar, de medo do mundo como esse se apresenta, de caminhar com os próprios pés. O protagonista carrega em sua expressão e em seus gestos um alto grau de revolta (silenciosa a maior parte do tempo). Com dificuldades financeiras, rouba lojas de conveniência. Diante do crescente e perturbador desejo pela vizinha casada, de quem toma emprestado uma calcinha para se inspirar em sua masturbação, consegue dela uma “mãozinha” (literalmente) para ajudá-lo a saciar seu desejo. À frente da mãe nua no hospital, primeiro estampa pudor em relação à proximidade com o órgão genital dela (em imagem bastante sensual em sua discrição), mas depois chega a insinuar que está prestes a cometer sexo oral. São imagens singulares como essas que nos chegam aos olhos pela câmera de Cho Chang-ho.

Imagens não sem risco de serem reduzidas à bula psicológica diante da ausência de lógica da vida. A relação do rapaz com a mãe em coma e, com a vizinha mais velha, assim como a dele e a da mãe com a água de maneira ampla (a piscina, o mar, o banho final), insinuam uma aproximação com a idéia de retorno ao útero. O sexo oral apenas sugerido, portanto, parece um “nascer ao contrário”. Essa associação, em alguma medida, está nos momentos finais, quando, acordada do coma, a mãe toma banho e vai para o mar, enquanto ele, depois de ver a piscina completamente vazia (imagem de um pesadelo seu), despe-se e deita no lugar da mãe no hospital.

Reduzir essas ambíguas imagens a sentidos únicos pode resultar em aborto das características mais interessantes do filme. Portanto, resta-nos, para trazer algo dele conosco, apenas sentir, aceitar suas esquisitices como parte do universo construído, sem racionalizações excessivas. De qualquer forma, menos ou mais apegado a uma fórmula, Cho Chang-ho torna-se, com esse primeiro passo, um cineasta a se prestar atenção. Não é nada desprezível em um festival que está habituando nossos olhos a satisfazer com pouco.


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