A Pequena Jerusalém (La Petite
Jerusalem),
de Karin Albou (França, 2005)
por Ilana Feldman
Entre a crença e o desejo
O hábito de ler sinopses, quando não se tem qualquer
referência sobre um filme, pode igualmente resultar em grande frustração
ou enorme surpresa. No caso de A Pequena Jerusalém, de
Karin Albou, temos uma sinopse esquemática, que deixaria entrever
um filme carregado de clichês: moça francesa, de família judia
ortodoxa, estuda filosofia (primeiro conflito), habita subúrbio
parisiense onde também reside parte da comunidade árabe (segundo
conflito) e enamora-se por um imigrante argelino ilegal, de família
muçulmana ortodoxa (terceiro conflito). Felizmente, em vez da
frustração gerada pela suposta previsibilidade do percurso narrativo,
tivemos aqui uma enorme surpresa.
Esse sentimento é produzido pelo modo como o filme
é articulado e construído. O que seria um esquematismo de roteiro
é fluidificado em favor menos das ações que de sensações, menos
dos eventos que de acontecimentos, menos daquilo que é dito que
das reações aos interditos. Assim, em vez de um enfoque pedagógico,
que organiza os conflitos e os resolve ao final, temos uma abordagem
arejada, cujos acontecimentos são alinhavados não sem pequenas
fissuras em seu ordenamento.
Os semblantes, os silêncios e as deambulações
são captados pelo abundante uso de planos próximos, e construídos
por uma câmera leve, quase imperceptível em sua discreta mobilidade,
empenhada em produzir ambientes fechados ou abertos em que predominam
os matizes de cinza – em sintonia com o universo dramático em
questão. No entanto, se existe homogeneidade das cores, entre
os personagens e suas crenças predominam os contrastes. O ambiente,
um recorte do subúrbio de Paris, é o mesmo, mas os conflitos dos
personagens, em reação às identidades e às normas previamente
estabelecidas, são distintos. Não se trata, entretanto, de uma
narrativa panorâmica dotada de diversos núcleos dramáticos. De
modo diverso, todo o filme é costurado a partir da perspectiva
de Laura, a protagonista, por meio de quem o espaço familiar,
social e geográfico nos é revelado.
Em relação à identidade judaica da personagem,
estamos longe dos clichês cinematográficos. Laura é filha de judeus
de classe média baixa, imigrantes da Tunísia, de ascendência sefaradi
(originários da cultura semita, da Ásia ocidental). Seu desejo
de controle das paixões por meio da racionalidade filosófica contrasta
com a valorização dos rituais, da crença em Deus e do misticismo
por sua família, para qual o mesmo controle das paixões é exercido
pelos dogmas religiosos. Dividida entre crença e desejo, entre
tradição e renovação, entre obediência e transgressão, Laura faz
de seu percurso existencial um movimento rumo à transformação.
No entanto, tal mudança não advém da resolução
de todos os conflitos ao final, e sim de um processo constante
que culminará em uma abertura para o novo. Se evita um olhar que
salienta os impasses, o filme também não se rende a qualquer tipo
de visão adocicada que atenue a gravidade dos conflitos. Ao contrário,
a abertura proposta pelo final carrega consigo grandes perdas
sobre as quais se insinua um devir de ganhos.
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