sessão cinética
Batedor
de Carteiras (Pickpocket), de Robert Bresson (França, 1959) por
Fábio Andrade A
produção do sublime
Pickpocket começa com
uma cartela de texto que conta, resumidamente, todo o filme que veremos em sequência.
O sentido desse procedimento era comum no cinema de Robert Bresson. Em O Condenado
à Morte Escapou, seu filme anterior, o título entregava a trajetória da narrativa:
um homem é condenado à morte e, eventualmente, escapa da prisão. Quando ele escapa,
o filme acaba. Aqui, o texto inicial desarma as expectativas narrativas em relação
a um filme que, essencialmente, permanecerá narrativo. Seu desenrolar é uma rememoração
de sua personagem principal que, destacada no futuro, recorta esse momento de
vida como um arco dramático, lhe conferindo sentido. Mas nós já conhecemos os
eventos, e essa pronta anulação é uma maneira de Bresson conduzir nosso interesse
a outros aspectos do filme. O que acontece importa menos do que como cada
coisa acontece. O sentido desse salto é evidente uma vez
que se conhece minimamente o método cinematográfico de Robert Bresson. Sua busca
pelo apartamento radical entre o cinema e os métodos de atuação teatral (a famosa
teoria dos modelos) é reveladora de uma confiança absoluta na decupagem cinematográfica,
onde a emoção – faculdade que Bresson dizia tentar alcançar antes da inteligência
– não vem da projeção psicológica das pessoas em cena, mas sim da maneira como
a câmera e a montagem se colocam criticamente diante de o que é encenado. "Meu
filme nasce primeiro em minha cabeça, morre no papel; é ressuscitado pelas pessoas
vivas e objetos reais que eu uso, que são assassinados no filme, mas, organizados
de uma certa maneira e projetados em uma tela, voltam à vida como flores na água",
dizia um de seus mais populares aforismos. Ao revelar a
trajetória da personagem principal no texto de abertura, Bresson chama atenção
justamente para o que os artifícios do cinema são capazes de produzir. Assim como
os roubos se tornam uma complexa e nada dissimulada coreografia de mãos e gestos,
o diretor apresenta a própria construção cinematográfica em sua plena artificialidade.
O envolvimento vem pelo jogo de sedução, o flerte que transforma cada roubo em
uma conquista. A relação da personagem com o crime é menos uma questão financeira
do que um desafio sensual, onde a destreza e a habilidade manual produzem uma
sensação tão forte de vertigem que chega a se aproximar do êxtase. Tal qual Barrington,
o ladrão do livro lido por Michel (Martin LaSalle), o diretor também usa ferramentas
para produzir um determinado estado. A diferença é que ele não pretende escondê-las.
Essa transparência ética de construção chega ao sublime em Pickpocket,
e é uma das quebras fundamentais realizadas por Bresson – algo que faz dele referência
para grande parte do cinema realizado de lá para cá, diretamente evocado em filmes
de João César Monteiro, Jia Zhang-ke, Johnnie To e Jean-Luc Godard. Esse
aparente mecanicismo não anula as afecções da obra, pois o êxtase é o destino
final. Em dado momento, Jeanne (Marika Green) pergunta a Michel se ele não tem
fé em nada. "Acreditei em Deus, Jeanne...", ele responde, "por
três minutos". Embora fugidia, a epifania – que, em Bresson, comumente passa
pela religião – deixa uma cicatriz permanente. Ao construir uma personagem que
busca restituir esse encanto, Bresson antecipa um sentimento que se tornaria fortíssimo
no cinema pós-maio de 1968: a errância distópica de Profissão Repórter,
Badlands e O Último Tango em Paris. Aqui, porém, o reencontro
com a epifania é mais do que possível; ele pode ser produzido pela arte.
Michel vivenciou o sublime por três minutos, e percorreu os mais estranhos caminhos
para encontrá-lo novamente. O reencontro é possível, mas somente no voice over,
na organização narrativa que confere sentido àquela série de acontecimentos. Pickpocket
traz esse encanto raro dos filmes especulares, onde a personagem faz uma trajetória
emocional gêmea à dos espectadores. Robert Bresson não só nos conduz ao sublime,
como nos atenta para todos os marcadores que servem como guia. Outubro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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