Pina, de Wim Wenders (Alemanha/França/Reino Unido, 2011)
por Fábio Andrade
De volta ao presente
Uma vez conversando com o crítico e amigo
Francis Vogner dos Reis sobre o sofrível episódio
de Wim Wenders no filme coletivo 8, ele me contou uma
teoria de que o recente declínio da Europa estaria estampado
na trajetória de três figuras: Wim Wenders, Bono
Vox e o Papa João Paulo II. Seria possível desenhar
um gráfico de ascensões e quedas concomitantes às
três personagens e, a partir disso, traçar uma leitura
ilustrativa da decadência da potência européia.
O Papa está morto, mas a comparação de Wim
Wenders com o vocalista do U2 e porta-voz do mundo – que,
inclusive, já trabalharam juntos algumas vezes –
permanece particularmente intrigante. Em ambos os casos, são
artistas com uma fase inicial de inegável vigor que encontram
reconhecimento generalizado em momentos de acomodação,
e que seguem carreiras solapadas por quedas na auto-paródia
e breves espasmos de auto-reinvenção. Na maior parte
das vezes, esses esforços não deram certo, mas há
de se apreciar qualquer traço de inquietação
nos “monstros sagrados”.
Ainda na mesma comparação, Pina foi saudado
mundo afora como a chegada do 3D ao “filme de arte”,
dando novo status a uma reencarnação tecnológica/mercadológica
que teve como um de seus primeiros representantes o filme U2-3D.
Mas, mais do que isso, tanto Bono Vox quanto Wim Wenders nutrem
uma relação fecunda com a cultura dos Estados Unidos:
a iconografia over the top de Paris, Texas e
Achtung Baby; a apropriação dos gêneros,
como o filme de espionagem em O Amigo Americano e a canção
gospel americana em “Still Haven’t Found
What I’m Looking For”; as parcerias com representantes
exemplares da cultura estadunidense em Filme de Nick
ou Rattle and Hum; e mesmo as odes diretas mais recentes,
e muito menos bem sucedidas, de Estrela Solitária
e “New
York”. Talvez insuspeitamente, Pina é o
filme mais francamente americano já feito por Wenders.
Pois embora Paris,Texas sobreviva ainda hoje como um
belo encontro de estrangeiros, esse mesmo estrangeirismo não
conseguia transpor o fascínio real, mas sempre desigual,
da erudição européia diante dos simulacros
da América – jogo que Win Wenders faz em uma cena
do filme, colocando Dean Stockwell contra uma paisagem pintada
às suas costas, que poucos depois é retirada, revelando-se
falsa.
Em
Pina, a relação não parte mais desse
desequilíbrio, dessa dicotomia entre verdadeiro e falso.
A idéia, na verdade, é retomar – literalmente?
Será o mesmo? – o bonde suspenso de Alice nas
Cidades, justamente o filme em que a idéia entre simulacro
e verdade se misturam. Se no filme de 1974 a personagem de Rüdiger
Vogler não consegue estabelecer uma relação
com a América sem passar pela iconografia estática
das polaróides, aqui, Wenders usará como mediação
o que Hollywood tem de mais verdadeiro: a pulsante mise en
scène dos musicais. Se fosse um filme de fim dos tempos,
essa operação provavelmente não significaria
mais do que a inversão dos mesmos papéis, no gesto
servil do ex-senhor que, hegelianamente, agora se assume
escravo. Mas como Pina é um filme pós-fim
dos tempos, o resultado é ainda mais estranho: um musical
europeu à americana melhor do que qualquer musical norte-americano
feito nos últimos anos.
Há de se reconhecer que grande parte da força aqui
vem das próprias coreografias de Pina Bausch. Mas Wenders
não só encontra possibilidades de relação
muito fecundas com um material que em si já é genial,
como nos permite a maravilha de se imaginar um filme de Busby
Berkeley em 3D, abrindo a coreografia para as profundezas mais
recônditas da tela, com uma câmera que tenta dançar
sem nunca se tornar protagonista, ao mesmo tempo em que evita
que uma relação excessivamente respeitosa a impeça
de criar algo junto aos bailarinos. Essa força
vem muito pela mise en scène imposta à
relação da câmera com a mise en scène
do próprio balé, mas também pela montagem,
de cortes nada reverentes à integridade do material original,
mas que são quase sempre expressivos em suas escolhas e
possibilidades de truque. Perde-se a possibilidade de se apreender
a inteireza das coreografias, mas ganha-se o deslumbre dos bailarinos
que mudam de idade entre um plano e outro, por exemplo, quase
como uma inversão dos truques de Méliès.
Embora
essa entrega ao cinema americano tenha algo de retorno, ela anuncia
uma preocupação mais lúcida com o presente.
Pois talvez Pina seja um filme tão inesperadamente
forte e expressivo por enfim perceber, ou ao menos supor, que
a decadência da Europa tem algo a ver com a falência
do poder discursivo e semântico das palavras – percepção
que, inclusive, marca profundamente a obra de resistência
de sujeitos como Manoel de Oliveira, Eric Rohmer e Jean-Marie
Straub. Não é à toa que o princípio
do fim, ou o fim do princípio, da força artística
de Wenders venha justamente com Asas do Desejo, filme
que começa com a Canção da Infância,
de Peter Handke, recitada e escrita em uma folha de papel, e que
segue todo ele circundado pela palavra-anjo. Se ali, em meados
da década de 1980, esse era um movimento que fazia tanto
sentido quanto os brados do refrão de “Pride (In
the Name of Love)”, tanto Wenders quanto Bono Vox passam
a maior parte das décadas seguintes ignorando o acerto
que o gênio de Pina Bausch já começava a indicar
no começo dos anos 1970, e que reaparece aqui quase como
uma correção de rumos (ou um reconhecimento de derrota):
de que o corpo, em sua expressividade muda, consegue dar conta
de uma maneira de viver e de se relacionar com o mundo em um determinado
momento com maior inteireza do que a articulação
semântica da linguagem escrita ou mesmo falada.
Em Pina, Wim Wenders percebe com clareza a raiz desse
problema, mas mesmo sua tentativa de solução aponta
para a diferença inconciliável de quem não
acompanhou a passagem de seu próprio tempo: os bailarinos
aparecem como talking heads em silêncio, mas o
diretor joga para a banda sonora falas em off que apontam
a própria ineficiência da palavra, e que associam
a Pina Bausch a descoberta do corpo como uma outra possibilidade
de linguagem e expressão. Mas nas coreografias de Pina
Bausch, é justamente o corpo quem, inclusive, expressará
esta mesma deficiência do ser humano em significar plenamente,
com as pernas pesadas que precisam ser carregadas pelas mãos
dos dançarinos, o sucessivo jogo de cair e levantar, ou
a força bruta da mão que puxa uma das dançarinas
pelos próprios cabelos. Wenders reconhece a ineficiência
da palavra ao lidar com o mundo hoje, mas sua desconexão
é tamanha que a forma de deixar isso claro é justamente
pela palavra, a fala, o depoimento que redunda com tudo que as
peças e coreografias já apresentavam de forma absolutamente
cristalina.
Em
2005, Luiz Carlos Oliveira Jr. escrevia, com razão, na
Contracampo, que Wenders vinha fazendo um cinema ressentido da
ausência de herdeiros. Seis anos depois, não se pode
dizer ainda que o diretor tenha feito as pazes com essa realidade,
mas ao menos é perceptível que ele se dá
conta de que os paradigmas são outros e que não
há cisma ou auto-envolvimento que possa atravessar o rufar
dos tempos. As coreografias filmadas de Pina fazem pensar
no naturalismo ultra-estilizado dos travellings de Jia Zhang-ke,
na pulsante profundidade da festa de Shara, de Naomi
Kawase, e até mesmo em As Hiper Mulheres, de Carlos
Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro, outro filme recentíssimo
a extrair grande força da mise en scène
dos musicais inserindo-a em um lugar estrangeiro. E a simples
comparação de um novo filme de Wim Wenders com obras
que vivem e pulsam a inevitabilidade do presente faz de Pina
seu melhor filme em duas ou três décadas.
Março de 2012
editoria@revistacinetica.com.br |