Pintar ou Fazer Amor (Peindre ou faire l'amour),
de Arnaud e Jean-Marie Larrieu (França, 2005)
por Eduardo Valente

Tateando no escuro

Pintar ou fazer amor é um filme à flor da pele. Discretamente, sem exibicionismos de linguagem, gruda pouco a pouco e cada vez mais sua câmera (e microfones, porque o som possui papel de protagonismo no jogo perceptivo que o filme propõe) aos seus personagens principais, o casal William (Daniel Auteil) e Madeleine (Sabine Azema). E, ao fazê-lo, consegue grudar a eles dois os sentidos do espectador. “Sentidos” que, no caso, é palavra-chave dentro do filme: não por acaso, o personagem que opera o choque que coloca a trama em movimento é o cego Adam (Sergi López), que é casado com Eva (Amira Casar) – em  outra operação que claramente nada tem de casual, afinal a jornada que empreendem Madeleine e William é uma de retorno a um mundo pré-expulsão do paraíso, em que a relação com a natureza é parte essencial da experiência humana e onde o pecado original parece ainda não ter acontecido.

Lá, em meio à natureza abundante e misteriosa, homens e mulheres são livres para amar e usufruir o mundo, sem as amarras que algumas convenções sociais nos impõem. Seria fácil imaginar Pintar ou Fazer Amor perdendo o prumo nesta defesa franca e aberta que faz de um mundo idealizado. No entanto, o filme cresce a cada seqüência e envolve o espectador na sua teia de imagens e sensações desta verdadeira volta às descobertas da adolescência por que passam seus protagonistas. Os irmãos Larrieu filmam os corpos dos seus atores com imensa generosidade, ressaltando tanto a naturalidade das suas formas não-perfeitas como (até por isso) a sexualidade à toda prova que parece emanar deles o tempo todo (em especial das mulheres, e de uma Sabine Azema nunca menos do que encantadora). Esta sexualidade sem moralismos redutores (mas também não sem constrangimentos e enfrentamentos internos) surge com a mesma naturalidade com que um jantar se transforma em muito mais do que isso apenas com uma simples pergunta (“vamos subir?”). E encontra seu ápice na belíssima sequência do encontro no escuro, e o posterior abraço na varanda.

Neste processo, o golpe de mestre dos irmãos Larrieu (não por acaso de origem das regiões montanhosas do sul da França, com relações fortíssimas com a natureza e as maneiras de filmá-la, desde os seus primeiros curtas) é mesmo um de linguagem cinematográfica. A força de sua proposta, e de sua crença no universo que constroem, só existe na medida em que eles conseguem nos convencer fisicamente da sua validade, da sua harmonia, da sua pertinência. Nisso, eles contam com uma já citada impressionante tapeçaria sonora, onde os sons da natureza são mixados e modulados para um efeito não menos que hipnótico; e com um trabalho soberbo de fotografia, onde as variações de luz são captadas com um tal detalhismo pelo diafragma da câmera que cada imagem possui uma pregnância poucas vezes vista no cinema mais narrativo. O escuro (assim como o fora de quadro – em suma, o não visto) é usado no filme com uma delicadeza tremenda, não só no tour de force da seqüência da travessia da floresta, mas até mesmo em seqüências quase banais como a da reunião no apartamento do casal, que abre o filme.

Muito mais do que um tratado sobre a insatisfação de uma determinada burguesia urbana, ou um libelo pueril sobre a vida “selvagem” idealizada (como críticos apressados podem diminuir ao tentar categorizar o filme), Pintar ou Fazer Amor é um filme sobre uma maneira de olhar para a realidade – acima de tudo, olhar através de um cinema que permite “sentir”, “tatear” pelas suas imagens em duas dimensões na grande tela e sons espalhados pela sala. Esta aposta nas possibilidades do cinema como linguagem em meio a uma narrativa intimista é raridade, especialmente num cinema narrativo no geral pouco afeito a formalismos. E aqui certamente a aposta se paga com sobras.


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