Piranha 3D (Piranha),
de Alexandre Aja (EUA, 2010)
por Fábio Andrade
O
pornógrafo
Piranha, o filme dirigido por Joe
Dante em 1978 (foto), era o reverso de uma absorção
irônica das produções de Roger Corman pela grande
indústria de Hollywood. À medida em que filmes de
vocação B (feitos, inclusive, por diretores que saíram
de sua própria trupe) se tornavam a nova aposta de custo-benefício
dos grandes estúdios - com a vagabundagem intrínseca
ao cinema de gênero sendo inflada por orçamentos à
época astronômicos, como o de O Exorcista,
de William Friedkin - Corman dá o golpe de mestre: devolve
Tubarão ao lugar que lhe era devido (e em nada menos
nobre, embora sem dúvida diferente), em um remake que
tira toda pompa e circunstância do filme de Spielberg, e mantém
apenas o jogo de suspense, a construção de clima e
a precisão de encenação e decupagem que constrói
ambos.
A eloquência é cristalina: tira-se um tubarão
gigantesco e que, a história sabe, funcionava mal a ponto
de precisar ser "escondido" na edição, para
abrir caminho a um grupo de peixinhos, patético e destruidor.
Pelo cinema - ou seja, por uma mise en scéne que
consegue transformar qualquer brinquedo de borracha em uma máquina
assassina - o cardume de piranhas de Corman conseguia efeito muito
parecido, por vezes até mais forte do que o do monstro branco
e paquidérmico da Universal. A sacada ainda tinha um duplo
sentido invejável: em termos de indústria, era o triunfo
dos muitos "peixes pequenos" sobre a morosidade recém-oficializada
dos blockbusters, em um último grito de vitalidade
de um sistema de estúdios que era tão grande e desajeitado
quanto o tubarão de Spielberg (e o final dessa história
todos sabemos, com Brian De Palma filmando com capital estrangeiro,
Friedkin cuspido de volta à margem de onde ele havia surgido,
Coppola em auto-exílio intermitente, e Spielberg e Scorsese
como cavaleiros oficiais da indústria); em termos históricos,
era a chance de recolocar os pingos nos "i"s: não
tente parasitar um parasita, pois a natureza do parasita, exercitada
em anos de história, sempre triunfará sobre o desejo
pontual do gigante que, por questões de contingência,
se finge parasita. Corman e Dante pegam Tubarão -
um belo filme à sua maneira - e, em uma cena de Piranha,
escancaram a relação da indústria com o filme:
ele é apenas um jogo de fliperama.
Corte
seco para 2010, e um novo Piranha ocupa as salas de cinema
do mundo, dessa vez dirigido por Alexandre Aja. Que as diferenças
dos dois filmes sejam baliza não exatamente de fidelidade
entre obras, mas sim de como cada uma delas usa uma mesma base para
se colocar de forma antagônica diante do mundo. Alexandre
Aja tira toda a metáfora política do Piranha
original, concentrando seu filme apenas na parte final do balneário,
que aqui ganha significado completamente distinto. No filme de Dante,
há um governo que mente, um exército irresponsável,
um cientista que se quer Deus, uma investigadora inconsequente,
e um dono de hotel de empreendedorismo sem escrúpulos que
- em um paralelo claro aos grandes estúdios de Hollywood
e à relação que eles estabeleceram com toda
a geração dos movie brats - não se
incomoda em jogar seus hóspedes às bestas, desde que
isso não atrapalhe os negócios. Em ação
conjunta, mesmo que descoordenada, todos eles produzem a catástrofe.
Em Piranha 3D, uma lata de cerveja jogada acidentalmente
(por, em referência muito sintomática, Richard Dreyfuss,
protagonista de Tubarão) em um lago abre uma fissura
catastrófica, liberando criaturas pré-históricas
que, por meio do canibalismo, se conservaram isoladas por séculos
no centro da terra. A questão, portanto, não é
de cunho político, mas sim naturalista: Piranha 3D
é marcado pelo instinto de sobrevivência que nos leva
a comer - metaforicamente ou não, para o filme não
há diferença - uns aos outros.
Estamos
diante, portanto, de um exploitation, um filme de lógica
predadora, mas que também se quer crítico desse processo.
Sim, Piranha 3D é uma obra moralista, como o são
diversos filmes de terror (em geral, não os melhores), e
aí é apenas questão de determinar a fonte e
a intenção dessa moral. Se em 1978 as piranhas eram
disseminadas por um rio - logo, um curso linear que vai do particular
ao comum, de uma pequena represa privada ao oceano - agora elas
surgem de dentro do próprio lago, da própria Terra,
do próprio filme (como indica o redemoinho do prólogo),
dos próprios seres humanos. Por cima da escória, porém,
há o paraíso. O balneário de Piranha 3D
é o próprio éden, pervertido pela lógica
devassa do springbreak, e ameaçado pelo hedonismo
ostensivo dos seios à mostra e da promessa de glamour da
indústria pornográfica. Aja é estúpido,
mas não é bobo, e para gritar o preto no branco é
preciso diluí-los em tons de cinza: em Piranha 3D,
as crianças mentem, a mocinha do interior se empolga tanto
com a promessa de glamour da equipe do filme pornográfico
quanto o rapaz protagonista, e a tipificação grosseira
das personagens se justifica na auto-ironia que o filme adota ao
longo de toda a sua duração. As tentações
existem, e o fato de um ou outro personagem não ceder a elas
não lhe garante sobrevivência no final das contas.
O niilismo do filme - que, ao contrário do Piranha original,
se corrói de dentro pra fora - vem marcado pela culpa do
pecado original. Não há sobreviventes possíveis.
Há,
portanto, uma oposição frontal e trágica entre
superfície e profundidade, e o filme toma partido claro de
uma delas: a humanidade pode parecer bela, mas a beleza não
sobrevive aos instintos destruidores que estão em seu interior.
A ironia, porém, é que Piranha 3D é
todo um filme de superfície, do verniz prateado da fotografia
glossy de publicidade (a mesma que McG usa, de forma consequente
e irônica, nos seus dois As Panteras) aos efeitos
especiais que permitem que tudo aquilo que Dante precisava "solucionar"
de forma enviesada (e por isso mesmo interessante) volte de forma
explícita, incontornável e frontal. Todo esse bom
acabamento tira, do filme, qualquer possibilidade de violência.
Com exceção de uma única cena - que começa
com atropelamentos de barco, e termina com cabelos presos na hélice
do motor, com todas as consequências que se pode esperar disso
- Piranha 3D impõe um distanciamento que anula qualquer
possibilidade de embate do filme com o espectador. Sua sangria é
cosmética, suas explosões são seguras, seu
moralismo é apenas conveniente e sua putaria acaba junto
com o feriado. Seja na opção pelo humor - no caso,
mais para distanciamento irônico do que para esculhambação
irrestrita; mais para Planeta Terror do que para Machete
- ou mesmo no uso do 3D - que dilui a proximidade perversa
necessária ao cinema de horror na sensação
de irrealidade que ricocheteia nos óculos 3D, fazendo com
que cada corpo em cena pareça de fato um boneco em animação
- o filme se fecha como espetáculo seguro, como entretenimento
que não entretém, pois não acredita no jogo.
Piranha
3D é uma nova tentativa de golpe da indústria,
uma nova sacudida para tentar se livrar dos parasitas. É
portanto, mais um filme A que se aproxima do universo B (o contrário,
novamente, de Machete, filme que perverte o que é
A em um espírito de porco típico dos filmes B) para
sugar o que ali sequer existe, e que, no mau entendimento, se esforça
para manter apenas a aparência - mais uma vez, questão
de superfície - que facilita a venda, as franquias e as máquinas
de fliperama. Não à toa, se o gesto histórico
do Piranha de Joe Dante estava justamente na transformação
do tubarão em pequenas piranhas, é sintomático
que Piranha 3D termine com um monstro gigantesco devorando
um dos protagonistas: ser peixe pequeno é menos uma opção,
e mais um estágio (predatório) para se tornar gigante
e soberano. Piranha 3D é marcado por esse incômodo
dos filmes em vestibular para blockbuster, jogando dentro
de limites seguros para, quem sabe, jogar em campos maiores de uma
próxima vez. E sim, há piadas engraçadas, há
momentos que divertem, há espasmos de catarse na babaquice,
mas tudo dentro de um gozo utilitário que se apaga com o
acender das luzes, como o desejo carnal é travado pelas próteses
de silicone. Um tanto como um filme pornográfico.
Novembro de 2010
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