Piratas do Caribe - Navegando em Águas Misteriosas
(Pirates of the Caribbean: On Stranger Tides),
de Rob Marshall (EUA, 2011)

por Pedro Henrique Ferreira

Piratas do CaribeSecretamente clássico

É bastante certo se identificar um certo histrionismo da narrativa cinematográfica até nos exercícios mais clássicos de nossa época (como no texto "Politicamente clássico narrativo", de Fábio Andrade). Trataria-se de um eco daquilo que Bergala, Mauriès e alguns outros críticos do tema identificaram nos anos 80 e 90 como uma afetação que diz respeito ao chegar tardiamente a um modelo clássico, sólido e impecável, quando o artista se lança a um esvaziamento do aspecto formal da obra para contaminar o conjunto de táticas estabilizadas com um certo valor de autoria. Assim, do abismo criado entre os recursos estético-narrativos e seu correspondente conteúdo sacralizante, o artista herético retêm apenas a primeira parte e a utiliza numa exacerbação infinda, levando esta formalidade ao mais elevado nível de afetação possível. O que justifica esta atitude maneirista do cineasta para com a história do cinema é faltar a ele exatamente aquilo que toda arte clássica exige. Se não podemos falar diretamente em rigidez e soltura (pois o clássico não é necessariamente rígido), talvez seja realmente cabível se falar em um outro binômio: fé e desconfiança. A fruição de toda obra clássica exige um contrato de fé - seja em Deus, na razão, na sociedade ou no amor - e uma escolha voluntária de abnegação e entrega absoluta a isto.

"Mas todo pirata é um ser desconfiado" é a máxima que Rob Marshall depreendeu ao cair de paraquedas no quarto filme de uma trilogia de sucesso, dirigida por outro diretor. Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas já nasce como uma empreitada velha que procura estender um braço a mais em um corpo já auto-suficiente. Quer dizer, o que fazer depois da conclusão de uma saga? Por que levá-la adiante? O que justifica uma continuidade após o fim do mundo? A par destas indagações e consciente de viver em um momento em que as séries de filmes já chegam às suas sextas e sétimas versões, prequels ou refilmagens, no maior caso das vezes estendida somente por seus sucessos mercadológicos (como aponta Raul Arthuso, em "Horror tão humano"), o diretor norte-americano topa a empreitada e arma sistematicamente uma maneira de justificá-la ou compreendê-la: em termos  artísticos, por que exatamente realizar estas sucessões infindas de filmes?


Piratas do CaribeEm Navegando em Águas Misteriosas, deparamo-nos com uma visão ligeiramente distinta da extraordinária figura de Jack Sparrow (Johnny Depp). Nos filmes anteriores, Gore Verbinski interessava-se sobretudo pelo distanciamento entre o homem e a lenda, a realização do grande gesto e o ridículo do processo. Rob Marshall veste com uma outra camada este herói casual, parlapatão e bobo, que vaga à la Keaton pelo campo de batalha como se a lá não pertencesse, lançando golpes de oportunidade com a expressão facial de quem não tem a mais vaga noção de seus efeitos, às vezes dando sorte, às vezes azar, obtendo sucesso no mais complicado e falhando no mais simples, nunca conseguindo concluir uma frase de efeito em seu benefício. De filme a filme, o burlesco capitão Sparrow se torna uma figura digna de ser melhor e melhor observada, pois se demonstra cada vez mais como um dos mais significativos heróis de nossos tempos (se ainda é lá cabível se acreditar em heróis): improvisador, bem humorado, galhofa, transgressor, de comportamento histriônico. Recordemos, logo ao princípio do filme, quando Sparrow se surpreende ao descobrir que alguém está travestido de sua pessoa para recrutar tripulação: agora, já não é um capitão ousado que vai atrás do tesouro, mas, ao contrário, alguém simplesmente impelido pela jornada, que já se encontra em "ondas estranhas", tendo de improvisar, como diz o personagem a certa altura, sua rota de fuga em um projeto de rejuvenescimento que não é exatamente seu. Em que medida não é justo este o sentimento que o novo diretor da fraquia parece nos transmitir?

Todo ar de monumentalidade e pretensa conclusividade que o terceiro filme da saga havia muito confusamente empreendido é abandonado em Navegando em Águas Misteriosas. A narrativa agora se emaranha, prossegue, dando nós e distensões no tecido narrativo, sofisticando cada vez mais a trama com giros e mais giros, traições, invenções e improvisações que trazem novos dados, novas peripércias se apresentando de supetão para abrir o leque, estender mais um pouco a trama quando ela periga um fim. São gestos absolutamente arbitrários e repentinos, assumidamente cínicos, cômicos e ridículos, mas cujas intenções fundamentais encontram um valor que desloca o que é gasto e torna todas estas guinadas, paródias de si mesmo, em algo de interessante e rejuvenescente. O valor precioso deste gesto se encontra sobretudo na percepção de que estirar mais uma trança à narrativa (um movimento que o próprio filme ironiza) não é sempre um ato de absoluto despreendimento formal, de distorção do modelo, um estirpe barato da narrativa tradicional, do mesmo modo em que levar um filme para além de sua trilogia não é exatamente uma pilantragem. Por que o artista herético, desfiador do clássico, pode transitar entre o ceticismo à fé que o modelo clássico narrativo exige e a adesão secreta a esta mesma fé? O eixo central do filme, que trata do amor entre Sparrow (Johnny Depp) e Angelica (Penelope Cruz), o amor entre piratas desconfiados, é sua expressão cabal. Ela precisa de Sparrow para salvar o pai, vilão onipotente. Por isto mesmo que Sparrow, ainda que a ame, não confia nela, e sempre precisará traí-la. As motivações desta espécie de herói são, no fundo, secretamente apaixonadas, secretamente clássicas.


Piratas do CaribeE é justamente por este motivo que a inserção de uma figura como o padre Phillip (Sam Claflin), aparentemente tão desnecessária e mal justificada dentro do filme, se torna algo significativo. Em sua paixão para com a sereia Syrene (Astrid Berges-Frisbey) encontramos a mais pura expressão do amor clássico hollywoodiano (se não, talvez, por suas figuras, um padre e um demônio): um amor que exige fé, escolha e entrega absoluta para crer realmente que não se trata de um mero artifício de sedução. E quando a traição por parte do padre involuntariamente ocorre (e surpreendentemente, não pelo demônio), é absolutamente necessário um pedido de perdão para que se dê a reconciliação desta fé e o beijo final, a conclusão mais significativa possível do amor clássico narrativo. O amor entre o ascético Phillip e a sereia Syrene é a percepção de que a fé que a estrutura clássica norte-americana nos pede é exatamente a fé nesta possibilidade de amor. Um amor que possibilita o perdão.

Piratas do CaribeMas ele é, igualmente, um espelho para o relacionamento central entre Sparrow e Angelica, que se amam, porém são desconfiados. Nada é mais significativo desta desconfiança do que a sequência final, quando Sparrow, após entregá-la o rejuvenescimento, "traindo-a para salvá-la", prefere abandoná-la em uma ilha do que ter fé no amor para o qual ela tenta seduzi-lo. O fado deste relacionamento é nunca concluir-se em um beijo. Sparrow o sabe, pois, após tantas traições e reviravoltas, enganações típicas de um pirata, toda espécie de perdão e reconciliação lhe parece impossível. E isto não é visto como algo efetivamente problemático ou doloroso, pois, mesmo nesta inconclusividade tipicamente anti-clássica, o que subsiste é o amor clássico: Sparrow poderia ter vivido ainda muitos anos com a fonte da juventude, mas preferiu entregá-la a Angélica. Afinal, trair, enganar e estender indefinidamente as coisas ainda não faz sentido sem a permanência deste sentimento.

Assumindo para si toda a farofa do projeto, que transita entre acontecimentos históricos efetivos da colonização espanhola e mitos sobrenaturais, envelopados por um pastelão de primeira classe, Rob Marshall conseguiu com Navegando em Águas Misteriosas a proeza de realizar o melhor filme da série até o momento e, nos apresentar um registro bastante fidedigno de um homem e de uma época (ou da fatia de uma época): seus desejos, anseios, ímpetos e descrenças. Como nos diz Sparrow, não sem ironia, ao final do filme, é melhor que as coisas acabem subitamente, quando tiverem da acabar. É melhor do que se estenderem indefinidamente, ainda por muito tempo, faltando-lhe a mais preciosa substância que talvez tenha movido toda narrativa clássica, desde seu princípio até seu apogeu nos anos 40. Assim, a desconfiança que um filme como Piratas no Caribe: Navegando em Águas Misteriosas nos transmite é em relação à estrutura clássica, seu reboco, mais do que seu fundamento e sustento. E quem há de dizer que não se trata de um filme que tem a mais pura fé naquilo que faz?

Maio de 2011

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