visita guiada
Popcine - um desafio (de) público
por Lila Foster

O projeto Popcine, que a Secretaria Estadual de Cultura de SP inaugurou há um mês com sua primeira sala-protótipo, na Rua Maria Antônia, região central da capital paulista, identifica um problema que mudou a feição do cinema na sua relação com a sociedade, com a geografia física e humana das cidades: a substituição do cinema popular de bairro, que vendia ingressos a preços acessíveis, pelo cinema de shopping, restrito a esses espaços de consumo e de preços exorbitantes. Projetos mantidos pelo governo e ONGs muitas vezes funcionam como um termômetro das demandas da classe cinematográfica e sua articulação política: se há alguns anos a demanda era pela garantia de uma produção constante de filmes nacionais, o que tem pautado o debate em torno dos destinos da nossa cinematografia é, cada vez mais, a distribuição e a viabilização comercial destes filmes - como temos discutido na Cinética, dentro da série "Cinema brasileiro para quem"..

Com uma estrutura barata – cada sala de 100 lugares equipada com projetor digital custa 60 mil reais –, o projeto pretende retomar um circuito popular de salas, unindo a isso uma programação com mostras temáticas, debates, filmes brasileiros e internacionais em diferentes formatos que não chegam ao grande circuito de distribuição. Neste primeiro mês as atenções foram dadas à mostra Imagens da Periferia: da Margem ao Centro, com uma ampla programação de filmes produzidos por e sobre a periferia o projeto opera o reconhecimento desta produção e, principalmente, o debate no meio acadêmico e cinematográfico sobre as relações simbólicas e materiais entre “centro” e “periferia”.

Numa tentativa de entender os rumos deste projeto estive em dois desses debates, e o que percebi foi uma enorme movimentação intelectual e artística em torno de um tema que poderíamos dizer que está em voga: a relação entre o audiovisual e a periferia. Um tema que merece mais do que algumas linhas, tanto pela sua complexidade no estado das coisas das grandes cidades brasileiras, como na relação que o cinema sempre estabeleceu entre "povo"/classe média, agora atualizado na dicotomia centro/periferia, e na incorporação da televisão desta temática (vide Antônia, Cidade dos Homens, Vidas Opostas, Central da Periferia). Em linhas gerais, o que era visível neste debates era a necessidade de reconhecimento de que existia ali, no centro, na sala Maria Antônia, no projeto Popcine, um forte debate e vontade de integração entre os produtores de cultura destes dois espaços. Um reconhecimento mútuo, uma ligação que se estabelecia através do cinema de questões em comum, ou melhor, preocupações em comum.

Esta aura de integração, no entanto, passou a ser facilmente questionada, uma vez que o mesmo espaço que catalisou uma série de debates, que tenho certeza serem de suma importância, acabou assumindo um estatuto extremamente contraditório. Como entender que um projeto que propõe uma mudança material no acesso ao cinema longe dos grandes centros escolha como local da sua primeira sala a Rua Maria Antônia, no bairro de Higienópolis, região central de São Paulo já com enorme concentração de salas de cinema? A justificativa dada por integrantes do Popcine é que esta sala funcionaria como uma vitrine – mas com esta resposta o que se vê exposto é um dilema ainda maior.

A visibilidade almejada aqui é o olhar do centro, dos formadores de opinião privilegiados e com isso de patrocinadores. O projeto se sustenta com a ajuda da Secretaria de Cultura do Estado, mas também com dinheiro de empresas privadas. Projetos que envolvem este tipo de financiamento se vêem de alguma forma enredados por uma dinâmica muito cruel. O objetivo principal, que é a ampliação do acesso ao cinema com uma programação de qualidade, só é possível com forte financiamento. O discurso humanista e democratizante no fundo se encontra submetido as leis do mercado: um projeto que se propõe a quebrar vitrines se vê obrigado a construí-las – e não é a toa que o espaço do Popcine mimetiza os cinemas mais elitistas na sua arquitetura e design.

É claro que tudo isso se configura como uma contradição: afinal, foi neste espaço, mais do que passível de crítica, que surgiram as idéias para este texto. Foi lá que pude assistir Subterrâneos de José Eduardo Belmonte, cineasta brasiliense que não conseguiu lançar o seu primeiro longa no circuito comercial. Foi neste cinema que a professora/diretora Inês Silva dos Santos passou o seu curta, que programou os filmes de Edgardo Cozarinski e Leonardo Favio (dois cineastas argentinos desconhecidos da maioria de nós), fez um tributo a Itamar Assumpção e que, nas próximas semanas passará filmes de Jean Rouch e Marguerite Duras.

O desafio que o projeto se propôs, no entanto, não é garantir somente uma programação de qualidade, mas que essa programação chegue aonde ela não chega e, que neste percurso, saiba incorporar projetos de exibição que já existem há muitos anos e que lutam pela formação de espaços de discussão sobre cinema. Em suma, de alguma forma, devolver ao cinema a sua feição popular, no melhor sentido que isto pode ter (retomar de forma mais ampla o interesse pelo cinema como fonte de entretenimento e debate) – e isto envolve MUITO trabalho. O projeto prevê a construção de mais 21 salas nos próximos meses ou ano. Por isso mesmo, talvez seja injusto julgá-lo no seu primeiro mês de vida, mas ele se coloca diante de um grande desafio – construir a primeira rede digital de cinemas populares –, e por mais interessante e fundamental que seja o projeto ele vai ter que tomar cuidado para que o seu discurso não resulte demagógico e que estas estruturas tenham garantida a sua manutenção nos espaços que foram propostos. Sabemos que muitas vezes em projetos públicos o número sempre foi oposto à qualidade, e o discurso não resiste à prática.

O que existe de mais positivo nisso tudo é que essas questões fazem parte dos pensamentos da própria equipe do projeto que esteve presente e participou de forma ativa dos debates. Esta equipe vai ter que se equilibrar na corda bamba dos dilemas que este projeto impõe mas ela parece estar disposta a encarar todas essas dificuldades de frente. Os votos são de sucesso, sempre.

(fotos tiradas no local pela redatora)


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