em primeira pessoa Por
que eu assisto ao Big Brother Brasil? por
Eduardo Valente A pergunta que dá título a
este artigo está longe de ser usada aqui como figura de retórica de quem já sabe
sua resposta – de fato o simples ato de sentar para escrever este artigo é uma
primeira tentativa de organizar, nem que seja para mim mesmo, uma resposta minimamente
satisfatória a ela. Parto para esta pergunta de uma constatação
simples: nunca fui um espectador de teledramaturgia (nem mesmo a das séries de
TV americanas), em maior parte por um desagrado com a dinâmica pedida por este
formato (baseado na fidelidade no acompanhamento), mas no que se refere à nossas
telenovelas também porque elas nunca conseguiram manter minha atenção por muito
tempo. No entanto, tudo isso mudou a partir do primeiro Big Brother Brasil, que
acompanhei de cabo a rabo e sobre o qual tentei escrever alguns artigos na Contracampo
– na época me centrando mais nas novas questões que o formato apresentava em termos
de discurso e tratamento de personagens, buscando traçar alguns paralelos com
o cinema e com a própria novela. Por motivos vários, acabei não acompanhando a
segunda temporada do programa, mas no terceiro me descobri definitivamente viciado,
criando o hábito (como disse, até então inimaginável para mim) de me esforçar
para não perder um só episódio – sempre usando o hoje quase arcaico aparelho de
vídeo-cassete para gravar a maioria dos programas, já que quase sempre estou fora
de casa no horário. Desde então, mais do que reflexões acerca do programa confesso
que o que mais me pergunto é justamente aquilo que dá título a este artigo: por
que eu faço isso? Uma operação fascinante Um
motivo que deixei de lado de saída foi a questão do voyeurismo da vida
alheia. Nunca tive a menor vontade de assinar a versão em pay-per-view
do programa (ao contrário de alguns estimados amigos, aliás), e de maneira geral
acho que as entradas “ao vivo” do Multishow são chatíssimas – exceção feita às
de terça, quinta e domingo, os dias de “grandes eventos” do programa na Globo
(paredão, escolha do líder, votação): nestes dias, a entrada ao vivo tem um outro
tom, dramático, onde é fascinante assistir ao trabalho de “edição ao vivo” feito
pelo jogo de câmeras e microfones para tentar não só transmitir na hora um programa
empolgante (afinal, todos sabem que naquela hora há muito mais espectadores ao
vivo do que no pay-per-view), como também já começar a formatar enquadramentos
e dramas para os próximos dias da versão editada. De fato,
o funcionamento deste jogo das câmeras e microfones, de uma complexidade extrema,
foi o que primeiro me atraiu no programa, que me parece um tour de force
de realização audiovisual. Para mim é impressionante pensar no trabalho envolvido
no acompanhamento de 40 câmeras e outros tantos microfones, buscando criar uma
dramaturgia que simplesmente nunca pára de ser escrita. Até como realizador que
sou, fico fascinado por tentar entender como dividir o trabalho de observar todas
estas câmeras, encontrar todos estes discursos e momentos (que podem ser de silêncio
ou completamente isolados, no claro ou no escuro), fazer a direção destas imagens
(que, como quem acompanha bem sabe, possui uma grande variedade de artifícios
– como a passagem de foco, o zoom lento, as panorâmicas, tudo isso pensado
a partir de uma dramaturgia), sabendo que qualquer coisa que seja perdida, não
será repetida – pelo menos não da mesma maneira que acabou de acontecer. A
este trabalho incessante (e já inacreditável para mim), junta-se o trabalho no
qual a Globo mais tem evoluído ano após ano: o da edição deste material dentro
de uma dinâmica dramatúrgica que demanda, necessita, implora uma direção para
que possa se tornar minimamente palatável, prazerosamente acompanhável dia após
dia. Este trabalho de edição é complexo por uma outra série de motivos – sendo
o primeiro deles, claro, o fato de que o roteiro não está escrito. Assim, por
mais que se deseje manipular o que acontece dentro da casa através de cortes e
retiradas de contexto (o que, é importante dizer, não me parece nada de errado
– afinal em reality show, as pessoas parecem esquecer que a palavra principal
para o programa é, e sempre foi, show), esta manipulação se dá sempre a
posteriori, e sempre pode precisar ser repensada a partir de eventos que aconteçam
a seguir – claro que aqui eu desconsidero
a “teoria da conspiração” de que os participantes agem o tempo todo de acordo
com orientações do programa (por dois motivos básicos: não existirem atores tão
bons assim no mundo; e com a transmissão ao vivo por TV e internet, a operação
envolvida em esconder esta manipulação seria tão absurdamente complexa que eu
prefiro chamá-la logo de impossível). O segundo ponto de
complexidade desta operação de edição se dá pelo simples fato de que no programa
se está gerando sempre, 24 horas por dia, um arquivo numerosíssimo de imagens
e sons que precisa poder ser acessado a qualquer momento – e será acessado, com
o uso de flashbacks que recuperam os menores olhares ou diálogos, que só
se tornam significativos dias (ou semanas) depois de acontecerem. Desta
maneira, um episódio de Big Brother Brasil é fruto de uma operação tripla
de grande capilaridade no contato entre as partes: direção ao vivo (de imagem
e som – mixar e ouvir todos os microfones ao mesmo tempo não é moleza) sem um
roteiro escrito e sem possibilidade de repetição das cenas; edição e criação de
dramaturgia/roteiro; e finalmente manutenção e acesso a um arquivo resultante
das duas operações anteriores. Tudo isso levando em consideração
que, semanalmente, um personagem deste reduzido núcleo dramático
vai "morrer" para a trama, proporcionando alterações enormes
em toda a dinâmica pessoal e dramatúrgica, sobre a qual os produtores
do programa tem apenas um muito relativo controle (se, de fato, eles podem decidir
que alguém "vai ganhar" e manipular todas as votações
populares para isso, de resto eles ficam reféns dos volúveis desejos
humanos e da sorte - de novo, "teorias da conspiração"
não me pegam já que vários dos eliminados do programa, em
várias das suas edições, claramente não seriam as
melhores opções para a manutenção das maiores audiências
do mesmo).
Juntando-se isso tudo, eu posso afirmar sem medo que esta realização
(e sua evolução a cada ano) é um dos fatores que mais me fascinam no programa
(e basta ver um episódio de um O Aprendiz ou um Fama para ver o
quanto o BBB é superior a eles em todos os quesitos acima mencionados).
Houve um tempo, inclusive, em que eu me enganava o suficiente para acreditar que
este era o único motivo pelo qual eu assistia o programa (e que não seria pequeno).
Mas (e daí veio e vem até hoje a maior surpresa/enigma para mim mesmo) eu sei
que não é assim, e minha empatia com os personagens é responsável em igual medida
por esta verdadeira obsessão com o BBB que hoje eu tenho. Personagens-autores,
personagens-atores, personagens-personagens, personagens-pessoas No
complexo jogo destas quatro categorias em que todos os participantes do Big
Brother se encaixam a todo momento é que eu consigo encontrar o fascínio maior
do meu olhar pelo programa. De um lado, existe a mistura constante das três primeiras
categorias: uma fascinante interpolação de papéis em que um mesmo corpo interpreta
o papel de autor, ator e personagem ao mesmo tempo. Sim,
porque por mais que haja uma “autoria externa” sendo exercida o tempo todo pelos
editores do programa, como já comentamos anteriormente as “falas” e as “ações”
são sempre escritas pelos próprios participantes – individualmente e através da
interação com os outros. Eu me lembro que, ao assistir o primeiro BBB, eu tinha
a clara certeza de que aquele programa só funcionaria uma vez, já que depois que
todos assistissem ao programa, saberiam como ele funciona e saberiam “escrever
seus papéis” para melhor atender ao que o público e o próprio programa exigem
- resultando em programas chatíssimos. No entanto, quanto mais programas
são exibidos, mais confusos os personagens parecem ir se tornando – ao ponto de,
nesta edição, nós termos as primeiras reais meta-personagens do BBB, Analy e Carol,
que conhecem bem a dinâmica do programa e com isso pensam e repensam suas próprias
participações lá dentro, tornando-se
autênticas encarnações dos Rosencrantz e Guildenstern escritos por Tom Stoppard
(a partir dos personagens do Hamlet, de Shakespeare): quão mais conscientes
de serem personagens, mais confusas quanto ao papel que desempenham (e nisso,
claro, ajuda que a Globo sempre tente mudar uma série de coisas na dinâmica interna
do programa). É dessa junção num só corpo dos papéis de atores/autores/personagens
que, como bem destacou Cacá Diegues num recente debate em São Paulo, vem a grande
novidade dramatúrgica que o BBB apresenta em contraposição à telenovela.
Esta possibilidade de interpretar a si mesmo (um “eu” consciente do estado de
teatro constante em que se encontra) vem junto com uma responsabilidade quase
imensurável – afinal, quem conseguiria ser “coerente” (seja lá o que seja isso)
a um mesmo personagem 24 horas por dia? Não é desafio para poucos, e é onde entra
o quarto vértice deste quadrilátero de “papéis” que os personagens do programa
interpretam – o das pessoas que elas efetivamente são, independente de estar dentro
ou fora de um programa. Sobre
estas “pessoas” e a possibilidade de uma “pureza”, de uma autenticidade do que
elas “realmente sejam”, muito já foi pensado sobre a impossibilidade da existência
desta entidade dentro de um mundo onde, afinal, estamos sempre interpretando papéis.
No entanto, como destacava o documentarista americano Frederick Wiseman, a lógica
de que ao ligar uma câmera as pessoas não estão mais “naturais” é profundamente
falsa: isso porque cada pessoa só pode interpretar papéis a partir do seu próprio
entendimento do mundo e de seus valores. Por isso, mesmo se ela decide “inventar
um outro eu”, este eu auto-construído será tão mais revelador do que esta pessoa
representa (se entendemos que uma pessoa é, mais do que tudo, um reflexo dos seus
valores). E, portanto, compreendemos assim que não existe uma “outra pessoa”,
mas sim a encarnação desta pessoa dentro de um “estado de teatro” abertamente
assumido como tal – onde, por mais que ela interprete, mais ela estará revelando
sobre si mesma. É, então, da constante dinâmica de revelação e esconderijo das
diferentes categorias que os personagens do BBB representam (autores/atores/personagens/pessoas),
e principalmente da dinâmica em grupo que resulta destes vários micro-universos
pessoais, que eu retiro de fato o meu maior fascínio ao assistir o programa. Claro
que muitas pessoas preferem criticar aspectos absolutamente banais destes personagens.
Por exemplo, o fato (aparentemente exacerbado na seleção deste ano, e na opção
por não colocar espectadores por sorteio no programa) de que seriam pessoas com
um perfil muito parecido – o que é uma negação daquilo que o próprio programa
nos prova toda vez: cada ser humano é único e diferenciado (e nesse sentido esta
edição, justamente pela aparente semelhança inicial entre todos, tem sido especialmente
interessante para provar isso na medida em que os personagens foram se revelando
tão diferentes). Outra crítica é de que o ócio em que vivem é um mau exemplo para
o espectador e que sua inacessibilidade ao estudo ou à cultura seria um desserviço
da televisão – ora, por mais sensível que eu seja à necessidade de se incentivar
o interesse pela educação e cultura, eu não quero ficar assistindo pessoas lendo
ou tendo aulas numa tela de TV: uma questão não tem nada a ver com a outra (assim
como as críticas aos personagens por serem “burros” ou “pouco interessantes” falam
mais do preconceito, ou hipocrisia, de quem assiste, e da sua pouca capacidade
de enxergar interesse em seres humanos/personagens para além de noções pré-concebidas
do que seja a cultura). O
que eu sei é que, quanto mais eu ouço alguns destes críticos do Big Brother, mais
eu tenho certeza que o programa é bem mais complexo do que eles. E olha que eu
preferi não entrar nem em inúmeras outras questões que o programa suscita (como
o papel interpretado – muito bem, mesmo nos erros – por Pedro Bial como apresentador/psiquiatra/manipulador;
na possibilidade de traçar paralelos entre aspectos maiores da vida brasileira
com o microcosmo da casa, das votações, etc; o acompanhamento e a relação estabelecida
entre espectadores e personagens – principalmente notável através do site do programa).
O Big Brother, nesse sentido, é como tudo em termos de televisão ou meios
de comunicação em geral: não existe como algo (“inútil”, “fútil”, “deseducativo”)
por si mesmo: tudo depende de como, e a partir de que operações e interesses ele
é assistido, destrinchado, pensado, sentido.
Ou pelo menos essa é a conclusão
que eu preferi construir para mim mesmo ao longo deste texto para que a resposta
à pergunta inicial me pareça minimamente aceitável – e assim eu possa dormir tranqüilo
esperando o capítulo de amanhã (e quem será o líder??). N.
do R.: Este texto também é uma resposta a mim mesmo de porque, depois daquela
primeira temporada, eu nunca mais consegui escrever sobre o BBB. Tendo aceito
a complexidade da operação, eu hoje não consigo mais simplesmente “ler” determinadas
coisas simples sobre o programa. Acho que para tratar dele com um mínimo de seriedade
que me interessaria, só mesmo escrevendo todo dia, sobre cada episódio/ação/edição,
etc. Até este ano ainda não consegui fazer isso – que é uma tarefa e tanto, em
muitos sentidos. Quem sabe no BBB8...
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