em primeira pessoa
Por que escrevo sobre um filme?
por Cezar Migliorin
Escrever sobre um filme
é decidir que este filme me acompanhará. Que a partir daquele
momento ele fará parte de minha vida, que estabelecerei uma conexão
com os pensamentos e sensações ali colocadas; que agora elas serão
parte de mim para além da sala escura. E nem sempre desejo o belo
e o que engrandece; por vezes o mau, o feio, o violento. Escrevendo,
crio condições para que estes afetos me habitem em diálogo: com
o filme, com os personagens, com o diretor. Perguntar-me porque
escrevo sobre um filme é um risco. Posso concluir que não deveria
fazê-lo, o que não deixará de ser uma resposta válida. Mas, feita
a pergunta, resta tentar respondê-la.
Escrever sobre um filme
é perguntar; “O que pode um filme?” E normalmente eles podem mais
do que umas estrelas no jornal ou um “bom”, “chato”, “revolucionário”,
“niilista”, etc. Ao mesmo tempo em que dispensam porta-vozes.
Não se fala em nome dos filmes, mas com eles – para além de nós,
para além dos autores, para além dos filmes.
Escrevo sobre um filme
porque às vezes não o entendo. As palavras se tornam uma forma
de compartilhar e abrir esta não-compreensão, uma forma de investigar
o entorno (meu e do filme), que faz com que um certo mistério
se instaure. Certas obras são distantes demais do que conheço,
do que entendo como arte e filme, e aí a obra grita: “me acompanhe,
não me deixe sozinha! Se me abandonares ao sair da sala alguém
dirá o que sou e eu ainda não sei o que sou, e morrerei se descobrirem.
Se me derem um rótulo, se ninguém vier manter o meu estranhamento,
a minha indefinição, desaparecerei muito antes de que eu possa
gritar o que posso.” O que é conhecido tranquiliza, mesmo que
seja violento e explícito, rude e covarde.
Escrevo sobre um filme
porque ele grita: Eu posso mais!
Na escrita o corpo está
em outro lugar, agindo diferente, se relacionando com o filme,
como as emoções, sentidos, etc, mas não mais dominado pela luz
que desfila na nossa frente sem que possamos nos mexer. Escrever
sobre um filme é colocar o corpo em uma nova relação com a obra.
É encontrar outros ritmos entre a obra e eu: espectador que deseja
a proximidade que se dá pelo corpo. É estabelecer uma nova temporalidade
entre a obra e o espectador. Na escrita, por uma questão temporal
e espacial, são novos e diferentes acessos à memoria que disponibilizo.
Escrevo então porque
a escrita me demanda outros ritmos, outras conexões entre eu e
a obra. Se o mundo me dá a sensação de tornar-me monorítmico,
o cinema e a escrita me abrem para multiplicidades de ritmos.
Sem o embate com outros ritmos a escrita não existe. O ritmo da
escrita já é em si uma demanda do filme de maneira diversa; o
próprio ato da escrita já investiga a obra porque nos retira para
um outro estado temporal em relação à obra, um outro estado do
corpo. Escrevo porque desejo ser plurirítmico e a escrita é um
modo de operar esta multiplicidade.
Escrever não é se colocar
de um lado com o papel do outro. Escrever é se colocar entre;
é uma operação espacial. Entre o papel e o mundo, entre o papel
e a cultura, entre o papel e o que já existe sobre a obra, a própria
obra e os universos que ela aponta. Escrever então é estar entre
materialidades; o filme e o texto – por menos concretas que elas
sejam. A escrita é uma maneira de operar passagens entre essas
materialidades.
Escrevo porque é a forma
que conheço de multiplicar – os sentidos de uma obra, suas possibilidades,
seu público e quem sobre ela escreve.
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