in loco Quinze
Visões do Fim do Mundo Praia do Futuro
– Um Filme em Episódios por
Francis Vogner dos Reis
No
dia da primeira exibição pública de Praia do Futuro – um Filme em Episódios,
o jornal Diário do Povo, de Fortaleza, dizia: “jovens com o audiovisual na cabeça
e uma câmera na mão” e que com o projeto o que saia ganhando era “o próprio meio
audiovisual”. Nessa mesma reportagem o jornalista se questionava se o filme era
“essencialmente contemporâneo” ou se existia ali algum “traço” do cinema contemporâneo.
Essa é provavelmente uma das primeiras manifestações públicas sobre o filme e
certamente diz mais sobre uma evidente desorientação perante a natureza de Praia
do Futuro do que sobre o filme em si. Em especial, dois termos qualitativos
usados para aferir volume e importância chamam atenção por figurarem de forma
desengonçada: “contemporâneo” e “audiovisual”. Palavras que parecem tentar dar
conta de uma série de coisas das quais não se sabe definir com exatidão.A
culpa não é só do jornalista, mas de todo um repertório, do qual ele se utilizou,
que se não tratado com conhecimento de causa, torna “contemporâneo” e “audiovisual”
partes de vocabulário acessório, generalista e sem substância, que demonstra uma
dificuldade galopante da cultura (imprensa, academia, política, mercado e etc)
em reconhecer o que é e pra que serve um filme que se afasta de um modo de produção
mais ou menos oficial e que transpareça essa condição em sua estética. Mais do
que uma simples designação do que é feito hoje em dia (o que seria, para dizer
o mínimo, correto), “contemporâneo” se tornou uma classificação das novidades
do pós-pós-moderno (se é que dá pra definirmos assim) e um rótulo que estabelece
uma suposta condição mais evoluída da imagem atual como superação do cinema moderno.
Já “audiovisual” se tornou, com o advento da tecnologia
digital, qualquer coisa, e é muitas vezes um termo que designa um estranhamento
com os novos suportes de captação de imagem, transformando o que é uma questão
de expressão e de linguagem em um assunto técnico. Lembremos que não estamos lidando
aqui com uma obra que conjugue reportagem, vídeo de casamento, vídeo-clipe, programa
de auditório, vídeo-institucional e novela. O projeto é claro em se declarar “um
filme em episódios” (não fazendo sentido que esta obra tivesse como sub-título
“um audiovisual em episódios”), e isso é uma posição clara no ritmo, na cadência,
nas composições e no seu referencial: o assunto é cinema, e, por mais paradoxal
que possa parecer (pelo menos para quem parou na década de 80), é cinema feito
em vídeo. Por isso cabe distinguir as coisas, separar o alho do bugalho. A
questão, entretanto, não é fazer um patrulhamento crítico do (pouco) que se disse
sobre Praia do Futuro, ou discorrer sobre o limite das terminologias que
esgotam e frustram a apreciação de qualquer filme, mas sim fazer uma limpeza de
terreno para que se possa ver Praia do Futuro – Um Filme em Episódios sem
mediações de vagos conceitos que podem, por fim, transformar a sua apreciação
em um mero exercício retórico que não compreenda a força do projeto e se esquive
de confrontar suas fragilidades. Onde a terra acabaA
pauta do dia é o fim do mundo. Se na década de 70 o fim do mundo foi o tema tanto
dos disaster movies quantos dos filmes da Belair de Sganzerla e Bressane,
hoje o fênomeno é reprisado, mas sob outra chancela. No passado o desespero, o
caos e a deterioração do projeto de mundo moderno, seja na auto-destruição do
homem ou na destruição completa de todo e qualquer paradigma – positivo, estético,
político – seguro. Hoje, um “para além” do fim da história, uma reflexão sobre
a herança (como sintoma e crise) do século XX. Nossa Música, de Jean-Luc
Godard e os filmes do Shyamalan não seriam sobre outra coisa senão sobre isso. O
que isso serve para entender Praia do Futuro – Um Filme em Episódios? Praia
do Futuro não se furta a ver e falar do presente de uma outra perspectiva,
apontando para um fim e uma destruição no passado (Banho de Sol para Dinossauros,
de Felipe Bragança - foto ao lado) ou uma narração regressiva vinda de um futuro
devastado (Valores Imaginários, de Ricardo Pretti - foto ao alto, abrindo
o texto). Esse é o tema e o espírito do filme, nem sempre de modo explícito, nem
sempre como preocupação central, mas de maneira geral, é um sentimento de mundo.
Mas o que interessa realmente é o que os episódios têm a dizer no que lhes é específico,
como que toda essa digressão ganha forma. Para ser honesto
com Praia do Futuro – Um Filme em Episódios, é necessário lidar com duas
questões. A primeira é a condição do filme: um filme em episódios, de cineastas
novos (não necessariamente iniciantes), feito com parcimônia e que não impôs nenhuma
pré-condição aos seus realizadores, a não ser a que norteia o título, ou seja,
ter alguma relação com a Praia do Futuro (um lugar bastante real em Fortaleza,
apesar do extravagante nome de ficção científica). A segunda é o filme em si,
substancialmente: um trabalho que une um conceito coletivo com projetos individuais,
de orientações estéticas variadas; alguns filmes, às vezes, com alguma semelhança
entre si, outros com significativo contraste com seus pares; repetição de alguns
procedimentos, escolhas arriscadas que vingam ou que se saturam. Acordes
dissonantesNesse emaranhado de olhares, interessante e
raro é que Praia do Futuro seja um projeto em que a coletividade não é exatamente
um conflito e nem um mal necessário, diferente da irregularidade condensada de
um Conceição – Autor Bom é Autor Morto (longa coletivo de estudantes da
Universidade Fluminense) e da necessidade em declarar autoria, como na maior parte
dos filmes de episódios, que não passam de uma coletânea de filmes curtos. A autoria
não é negada, como em Conceição, mas também não é um objetivo central:
a idéia foi compor um painel com os quinze episódios, sem divisão em cartelas
e sem um contraste muito marcado entre alguns episódios, o que certamente demandou
um esforço redobrado da montagem que teve que imprimir sentido e ritmo à sucessão
dos episódios somente por meio das imagens que dispunha. Por
isso, um trajeto: começa com um pouso de avião em Fortaleza no episódio Eu
errei, você errou, de Wanessa Malta, e termina com os dizeres de “onde o tempo
se perdeu”, do episódio de mesmo nome de Ivo Lopes Araújo (foto ao lado). Praia
do Futuro – Um Filme em Episódios, só estabelece um tempo no título e na referência
à praia de mesmo nome. Segundo o episódio de Ivo Lopes Araújo, a Praia do Futuro
é onde o tempo se perdeu. Portanto, antes de ser o no future da década
de 70 – à sombra da catástrofe – há uma suspensão de limites, divisões e localizações
no que diz respeito ao seu fluxo de imagens e ao seu próprio lugar na produção
cinematográfica corrente. O que não é um valor em si, mas uma afirmação de que
é possível ver as coisas de outro modo, a partir de outros referenciais, transfigurando
o que é de conhecimento público e geral, seja a praia, nossa época ou o próprio
cinema, mesmo que em muitos momentos isso soe mais como um desejo do que como
uma proposta. De
modo geral, o sentimento de desespero é uma constante, inclusive em episódios
bem diferentes entre si (p.f, de Fred Benevides, Pequena Grande História,
de Luiz Pretti, A Pedra, de Rúbia Mércia), assim como o gosto pelo plano
longo e fixo (a memória pede por Depois do Fim, de Ythallo Rodrigues -
foto abaixo - e Aprenda a Nadar, de Salomão Santanna) e a montagem de imagens
e sons é coisa partilhada por muitos dos episódios como A Linha da Pipa,
de Themis Memória, Chama Violeta, de Thaís de Campos, Vídeo (2008),
de Pablo Assumpção e Mar Morto, de Mariana Smith (foto acima). A dificuldade
em dizer algo mais categórico sobre esses episódios é que tendo visto uma só vez,
fica difícil fazer uma distinção mais precisa sobre o olhar de cada diretor. Algumas
imagens – de todos os episódios – ficaram, e uma impressão geral de procedimentos
similares também. O
desespero (inclusive por meio de berros), fascinação pela duração do plano (tanto
fixo, quanto o sequência), geram uma afirmação do suporte e do dispositivo. Existe
uma preocupação com “tempo” (ou melhor, com a dispersão do tempo), mas que ignora,
em algum grau, o espaço – que se faz em muitos momentos a partir de situações
e impressões, o que é bem radical nos momentos mais abstratos. O espaço acaba
sendo uma idéia, não uma construção, não algo imanente. São formas de interesse
personalíssimo e intimista, às vezes redundantes. Um dos diretores, Ricardo Pretti,
em texto que escreveu sobre os episódios de Praia do Futuro, faz um comentário
sobre o Eu Errei, Você Errou - que se passa dentro de um avião - em que
fala do avião como “um reduto para o sentimento da garota”. Redutos de sentimento:
nada mais preciso pra definir boa parte dos episódios. Há
aqueles que preferem delinear o espaço e a ação, dar corpo e um direcionamento
mais cadenciado. Castelo de Areia, de Thaís Dahas e Guto Parente, por exemplo,
elege personagens, um trajeto, uma situação e um dispositivo que dá contorno ao
passeio de um casal e sua filha em forma de vídeo de família captado em câmera
de celular. Uma coloquialidade (rápido, simples, econômico e direto) e uma objetividade
fundamentais. É um filme de conceito, que abre mão da abstração e da estilização.
Já era Tempo, um filme musical, sensual e tropical absurdo, de Armando
Praça e Diogo Costa (foto acima), propõe a fazer da praia um espaço com um ideário
próprio e particular. O corpo e a ação em detrimento à denotação das idéias. A
praia é efetivamente um lugar. Não é uma impressão íntima (ou intimista) sobre
a praia do futuro, não tem medo do populacho e da farofa - apesar de que as ladies
da praia têm lá a sua classe. É difícil falar de todos os
filmes tendo-os visto uma vez só, assim como generalizar acaba sendo um pouco
injusto com os trabalhos particulares: dois filmes parecidos podem atingir resultados
bem diferentes, e trabalhos nada parecidos, podem ter alguma sintonia. Pode-se
falar em geração, como Marcelo Ikeda bem
colocou em seu texto, mas o bom é que não há um bloco, um grupo que pensa
igual, um clubinho. Os filmes são diferentes e o desafio de juntar tudo (na ordem
que foi instituída) reforçou as diferenças e as divergências. Por
isso, o episódio de Ivo Lopes é onde se encontram (e se entendem muito bem) algumas
das tendências mais recorrentes no filme. Um jogo com o off space e uma
panorâmica tem um objetivo claro, ainda que Ivo não os execute de forma automática
e óbvia. Consegue partilhar uma impressão e uma revelação da praia, como lugar
e como espaço subjetivo. A Praia do Futuro não é só um ponto de partida ou de
chegada, mas um modo do diretor falar de si e de seu lugar, é um espaço subjetivo,
mas é um lugar concreto também. Concentra os desejos e os princípios de Praia
do Futuro. Agosto de 2008editoria@revistacinetica.com.br
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