in loco - cobertura dos festivais
Pretérito Perfeito, de Gustavo
Pizzi (Brasil, 2006)
por Eduardo Valente
Um
prostíbulo chamado Brasil
A reconstrução pela memória é um dos vieses mais
explorados pelo documentário que investiga o passado, e só em
anos recentes vimos filmes como Peões, de Eduardo Coutinho;
A Cobra Fumou, de Vinicius Reis; Soldado de Deus,
de Sergio Sanz; ou Caparaó, de Flavio Frederico, indo investigar
nas lembranças de sobreviventes de determinados “grandes eventos”
sócio-políticos nacionais a possibilidade de um entendimento enviesado
sobre o Brasil de hoje. Pois não é outro (como já deixa antever
o título) o trajeto deste Pretérito Perfeito. Só que o
primeiro longa de Gustavo Pizzi passa longe dos “grandes acontecimentos”,
e centra seu olhar na história escondida debaixo do tapete – no
caso, a história de uma famosa casa de prostituição carioca, ambiente
mais do que representativo – afinal, como diz um dos mais marcantes
personagens do filme, “isso aqui é que é cultural!” (e que não
deixava de ser ponto de encontro de nomes altamente representativos
da “Grande História” brasileira – mas só extra-oficialmente e
fora das horas de trabalho comuns, como explica um dos outros
depoentes).
Dentro desta busca de um espelho do presente,
e ao mesmo tempo uma origem de todos nós, o filme de Pizzi conta
com dois grandes trunfos: o uso do espaço presentificado da casa,
algo que os outros filmes nem sempre podiam fazer, apelando mais
para fotos e imagens de arquivo; e uma pesquisa de personagens
de significativa felicidade, uma vez que quase todos os entrevistados
possuem algum nível de dramaticidade que os torne especiais. É
frente o espaço da casa que estes personagens geralmente têm seus
momentos mais significativos nos depoimentos, e onde o jogo entre
a memória e a construção fantasiosa do passado mais se torna claro.
Ao aspecto naturalmente mal-assombrado que esta casa de lembranças
tem hoje (seja pelo estado mal cuidado do seu ambiente, seja pelo
uso como clube noturno por jovens de hoje), Pizzi tem a sorte
de que se some uma verdadeira história de fantasmas sobre a casa,
o que somente acumula sentidos que o filme já carregava em si.
Desta forma, aliás, até uma dificuldade do filme (sua extrema
“independência” de meios e realização), que eventualmente poderia
ser um problema, se torna parte da linguagem, com seus escuros
e estouros (de som e luz).
A história que o filme realmente nos conta é a
de um conjunto de relações sociais e de gênero que diz muito sobre
a organização da sociedade brasileira. Face às fantasias masculinas
de controle e status relacionadas ao sexo (o desejo de “tirar
a mulher da zona”, a alegria pela doença venérea) opõe-se o depoimento
desmontador da prostituta de 65 anos de idade, que desafia inúmeros
tabus na sua fala direta e simples (primeiro, pela exposição da
sexualidade na terceira idade; depois, pela inversão que opera
hoje, procurando garotos de programa; e, finalmente, pela forma
de lidar com o “casamento”, sem qualquer moralismo). Se na sua
fala não podemos ver a prostituta como a coitada indefesa, por
outro lado os conceitos românticos que o próprio diretor tenta
confirmar também caem por terra (da prostituição por prazer, por
exemplo). O que Ivanilda expõe, junto com os ex-frequentadores
do prostíbulo, é a complexidade do ser humano frente a uma das
suas expressões mais naturais, mas ao mesmo tempo mais tolhidas
socialmente, fonte eterna de mistério, maravilhamento e problemas:
a sexualidade.
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