Pretérito
Perfeito, de Gustavo Pizzi (Brasil, 2006) por Julio
Bezerra Memória,
hoje
Pretérito perfeito
é um documentário sobre a memória. Estreante em longas, Gustavo
Pizzi convidou antigos freqüentadores e funcionários de uma famosa casa de prostituição
carioca, a Casa Rosa, para revisitarem suas dependências. As atividades do prostíbulo
foram encerradas no início dos anos 1990, mas a casa ainda funciona como uma boate.
A memória presentificada é uma questão ou viés caro ao cinema de maneira geral
e ao documentário em particular. Muitos filmes investigam as lembranças de sobreviventes
de determinados eventos políticos ou históricos; outros montam discursos biográficos.
Todos sempre plantados no presente de sua realização. Ao documentarista cabe lidar
com estes deslocamentos no tempo.
Aliado
a uma boa pesquisa de personagens, Pizzi soube usar muito bem esse espaço “presentificado”.
Diante da casa, os personagens têm seus melhores momentos. Eles entram no estabelecimento,
sobem as escadas, andam pelos corredores, percorrem todos os quartos. Quando o
diretor filmou, em 2004, o lugar ainda mantinha boa parte de sua antiga decoração.
O passado deixou seus vestígios: cada um desses espaços representa uma experiência
vivida. O que se vê são os procedimentos da memória sendo acionados. Os entrevistados
colocam sua memória e a forma de articulá-la como assunto do filme. O longa de
Pizzi nos lembra que histórias sustentadas por depoimentos nada mais são do que
uma visão sobre o passado na qual os testemunhos revêem o que se passou com os
olhos do presente. A esta contaminação da memória do passado pelo presente funda-se
uma nova perspectiva sobre o que se conta, não salvo da fabulação. Os
testemunhos esbanjam níveis diferenciados de dramaticidade, sempre a serviço da
emoção que aquele espaço traz à tona. Não são programáticos, mais parecem flagrantes.
São depoimentos hesitantes, por vezes envergonhados. Nesse processo, casos e detalhes
dos mais curiosos vêm coloridos à superfície, da primeira vez do cantor e compositor
Lobão às visitas de jogadores de futebol. É o caso também de Ivanilda, a personagem
mais interessante do filme. Ela funciona como contraponto aos velhos freqüentadores
da casa: aos 65 anos, presidente de uma ONG de apoio à classe, ela nos conta sobre
o dia-a-dia de uma prostituta aposentada. Pizzi a acompanha de carro por alguns
pontos de prostituição da cidade. Em sua fala direta e simples, Ivanilda desafia
tabus sem nenhuma arrogância. Quando ela enfim chega à Casa Rosa, o filme atinge
seu clímax. Pretérito perfeito nos faz pensar o engajamento
emocional que se estabelece nos atos de testemunho e de narração da memória. Essa
relação parece reforçar o valor de autenticidade do próprio filme. Há uma carga
emotiva que une personagem, diretor, e espectadores, e essa voltagem reveste o
filme de credibilidade. Curioso como aos poucos os problemas evidentes na artesania
do documentário (em especial os estouros de luz e som) se tornam parte de uma
certa linguagem. Ao documentarista interessa apenas a busca por lembranças. O
filme respeita os deslocamentos espaciais e temporais dos personagens, os escuta
e tenta manter suas hesitações e silêncios, o ritmo de quem fala, de quem procura
uma lembrança. O documentário funciona aqui como um arquivo da memória, uma fonte
de pesquisa afetiva e histórica, do imaginário e da memória coletiva. Nesse jogo,
ultrapassa seus personagens sem se descuidar deles, revelando aspectos da organização
social brasileira. Pretérito perfeito é um filme que coloca o foco no indivíduo
e não em uma questão social. Mas em seus melhores momentos revela uma por intermédio
do outro. Dezembro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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