in loco - cobertura do Festival do Rio

Primeiras imagens na mão
por Paulo Santos Lima

Comecei o Festival do Rio com a câmera na mão. Não na minha, claro, mas nos quatro filmes que enfrentei no sábado. Constatação nada inusitada, uma vez que tal procedimento hoje é padrão em variados cinemas, indo de João Batista de Andrade a Olivier Assayas. E justamente pela extensão, aponta tanto notáveis exercícios de enquadramento quanto a falta total da caligrafia, naquele treme-treme nada conceitual.

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Esboços por Frank Gehry (Sketches of Frank Gehry), de Sydney Pollack (EUA, 2005) - Panorama

O meu primeiro filme da mostra também foi um primeiro filme para Sydney Pollack – o primeiro em sua filmografia no qual ele utiliza uma câmera digitalo. Cineasta boa praça, ainda que medianamente talentoso, Pollack vai até um artista que muito admira, o arquiteto Frank Gehry, para celebrar seu gênio artístico. Está claro, com a segunda câmera que nos dá imagens do próprio diretor filmando seu documentário, que é um filme-espelho, ou seja, uma obra que diz mais sobre seu realizador, que, vez e outra aqui, também comenta sua experiência como “artista”, além da admiração pelo projetista.

Mas, apesar da obra assombrosamente moderna de Gehry, o documentário transita na caretice, alternando imagens ilustrativas das construções do arquiteto com os depoimentos. Quase todos, chapa-branca, com exceção de um crítico de arte que aponta certos problemas morais no museu Bilbao, jamais levados à frente. De resto, temos o analista que rascunha explicações sobre sua personalidade, Dennis Hopper e Julian Schnabel representando a casta de artistas de Nova York que pululam pelas galerias de arte e dissertam sobre artes plásticas, ópera e literatura – ou seja, se vêem como os novos Andy Warhol, Jackson Pollock e Basquiat.

Essa babação que não problematiza a obra do biografado me parece um problema, claro, mas é, antes de tudo, uma opção. O problema do filme fica mais embaixo: a experiência com a arquitetura é complexa, estabelecendo-se primeiramente de forma puramente artística (quando nos deparamos com a construção em si, fora dela e assistindo a ela) e depois entre a arte e a funcionalidade (quando estamos dentro dela, passeando por ela). Sydney Pollack não consegue levar suas duas câmeras para uma experiência, não consegue nem mesmo se apropriar dos prédios e casas de Gehry e torná-los espaços e objetos cinematográficos (como fazia um John Ford). A câmera não consegue estabelecer uma presença, olhando o material como um turista de excursão: admirado, mas um tanto apressado. Um olhar de encantamento, mais ilustrando e fazendo jogral com o falatório. Pollack não é Herzog, e a chapa branca desse simpático filme responde mais a ele próprio, a uma quase legitimação como artista high art. Não à toa o filme, no original, chama-se Sketches of Frank Gehry, numa referência ao disco Sketches of Spain, de Miles Davis, gênio do jazz cultuado pela alta roda intelectual. 

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Verão em Berlim
(Sommer vorm Balkon), de Andreas Dresen (Alemanha, 2005) - Panorama

Neste filme, Dresen parece repetir (com êxito) o rigor de cinema utilizado naquelas festinhas infernais, onde sempre encorajam o nosso tio ou o amigo do pai a serem cineastas por um dia. Está muito claro que o operador de câmera de Dresen embaraça-se com a leveza do equipamento e parece perder o controle, num quase desleixo. O maneirismo dessa câmera barbeira parece ter um alvo: tornar “mais cinema”, fazer dessa crônica sobre duas belas e tenras amigas que buscam a realização no mundo contemporâneo (em outras palavras, procuram um marido ideal), algo relevante para a história (do cinema). O filme faz ponte com o pior do cinema indie americano, montando um pequeno painel humano que constata certas disenterias existenciais, banalidades cotidianas, diagnósticos totalizantes sobre a nossa contemporaneidade. Não pára por aqui: Verão em Berlim encontra Todd Solondz nas seqüências cômicas com os velhinhos que estão à beira da morte, expondo-os ao ridículo, fazendo piada em cima de velhinho que se urina nas pernas mas puxa a descarga etc. Ainda é dito no filme, enfaticamente, que cuidar de idosos é uma função indigna. O garrancho da câmera, portanto, é o mal menor.

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A Ruptura (La Coupure), Canadá, 2006, de Jean Châteauvert – Foco Canadá

Um filme que trata de algo tão intenso como o amor carnal entre dois irmãos deveria ser um tanto mais livre, menos milimétrico na encenação e truques. Châteauvert começa bem seu filme, mostrando irmão e sua mana transando, com câmera colada. Ainda nem sabemos quem eles são, algo que virá logo a seguir, quando Christophe, o irmão, fica sabendo que o marido de sua maninha se mudará para Los Angeles, com mulher e filhos a tiracolo. Eles têm ciência de que não conseguirão viver separados – algo que o filme teoricamente acerta, mas que, nas imagens soa mal resolvido, devido à forte marcação e direção de atores problemática. A câmera, que passeia um pouco pelas cenas e que descansa mais tempo no rosto de seus personagens, é dura, controlada demais. Como o filme narra uma história de impossibilidade, parece ser essa a malandragem de Châteauvert: uma vez que não há nada além de estancar o desenvolvimento, girar em círculos, deixar seus personagens na prostração suprema. Há um ponto do filme em que todos sabem o que rola entre os maninhos, mas a reação é a mesma: imobilidade, choradeira. Não há, no entanto, uma imagem desse relacionamento que se faça notável.

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TV Junkie (idem), de Michael Cain e Matt Radecki (EUA, 2005) - Midnight

Youtube, webcam, câmera escondida: não há como os autodocumentários não vicejarem. A necessidade não é mais ver imagens, mas se ver em imagens, ou, mais, se ver como imagem. Se a auto-exposição tornou-se uma realidade (dos programas de TV às veiculações mais íntimas) há que se filtrar aquilo que ganha relevância para ser exibido num festival. Ou seria melhor deixar de lado a análise de cada um dos filmes e trabalhá-los no conjunto, como algo fenomenológico?

Isso fica para depois, e não necessariamente assinado por mim. Vamos então a este filme, que na verdade foi montado e dirigido por outros que não o biografado. Cain e Radecki criaram narrativa a partir do material captado por Rick Kirkham, que se filma desde os 14 anos, foi apresentador de um programa sensacionalista nos Estados Unidos e hoje, aos 48 anos, milita contra o consumo de drogas. A manipulação salta aos olhos, como quando o infeliz deixa a câmera registrar ele fumando crack: a cena, forte em si, ganha câmera lenta, trilha dramática, acelerações. E há, ainda, Rick falando em tempo integral para a câmera, seja sobre sua derrocada, seja sobre seu amor a esposa e filhos. Se a edição impede que haja um momento de alteridade da imagem, TV Junkie deveria ser mais talentoso como narrativa cinematográfica, verbalizando menos e deixando as imagens mais livres da explicação das legendas e do blábláblá. Notável, aqui, só ver como Kirkham, aos 14 anos, em 1972, meio pioneiro, já usava uma câmera, menos para registrar seu cotidiano e mais para se eternizar para além deste.


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