em processo
Sobrevivendo ao tempo
por Cléber Eduardo

No trabalho do diretor, há o tempo do fervilhar das idéias e da energia criativa; depois o tempo da ação propriamente dita; mais tarde, dependendo do caso, o tempo de maturação e de distanciamento. No Brasil, com sua dinâmica de produção, um diretor tem de ser ainda especialista em espera – invariavelmente, resultado de circunstâncias indesejadas (fim do dinheiro).  Porém, as circunstâncias motivadoras de esperas indesejadas, se bem aproveitadas, podem beneficiar a ambos – diretores e filmes.

Para tanto, como diz Lina Chamie, é preciso, sendo fiel às suas palavras, “sobreviver ao tempo”. Pois o tempo tanto pode jogar a favor como contra, e nem sempre é possível controlá-lo, colocar-lhe rédeas, conduzi-lo de acordo com as necessidades. Lina está à espera de dinheiro para continuar a montagem de A Via Láctea, seu segundo longa-metragem, mas sabe do risco de se esperar além do tempo saudável para o filme. Filme, por sinal, que também encara o tempo: o narrativo e dramático, esse tempo do protagonista. A Via Láctea não deixa também de ser um filme sobre a espera, sobre uma passagem, uma ruptura, propiciadora de uma organização de experiências. A espera que dá sentido.

No entanto, ciente das condições de realização no Brasil de 2006, Lina age na espera. Depois de ganhar um prêmio de R$ 400 mil da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo em 2003, inscreveu o filme em outros concursos, não ganhou mais nenhum centavo, também não captou nada e, percebendo que o tempo de espera, se prolongado, se tornaria um tempo de esterilidade, reformatou projeto e orçamento: de 2,5 milhões, incluindo lançamento, caiu para R$ 1,5 milhão. Filmou com os R$ 400 mil. Operação de guerrilha, como gosta de definir, com todos trabalhando, em última instância, por desejo de trabalhar. Cachês, nesse caso, era luxo. Ao menos em uma primeira etapa. Marco Ricca e Alice Braga, os personagens principais, toparam tudo quase sem dinheiro

O indesejado, ela crê, foi benéfico. Primeiro porque levou à decisão de captar quase todo o material em vídeo (80% do filme foi feito com a DVX100A), o que, hoje ela constata, era mesmo a melhor maneira de lidar com a estética da proposta. Queria um filme vigoroso, uma imagem dinâmica e muitas imagens observacionais das ruas de São Paulo, o que, em 35mm, seria mais custoso e menos dinâmico. O vídeo possibilitou ainda deixar a câmera ligada durante todo o tempo passado no trânsito pelo protagonista Heitor (Ricca). Para a filmagem, perto do Natal de 2005, com congestionamentos diários (para a sádica felicidade da equipe), foi mão na roda. Na montagem, esta roda precisou ser reencontrada, pois, antes de começar a apertar os botões do computador, havia 70 horas de imagens.Vídeo é um risco.

O segundo benefício formatado pelas circunstâncias materiais foi a troca de montador. Lina queria alguém com experiência (Idê Lacreta, para ser específico), mas não havia recursos para pagar por alguém com seu currículo. Chamou para o lugar um jovem com pouca experiência, André Finotti, VJ e montador de Infinitamente Maio, do paranaense Marcelo Jorge. “A inexperiência é sensacional”, diz Lina. “Finotti não tem medo, corta solto, com desprendimento, sem pudores, sem vícios da experiência, sentindo a imagem”. E como funcionou a parceria? Finotti propunha a organização de uma seqüência, ela via e os dois sentavam juntos para chegar a um consenso. Foram montando, assim, nas palavras dela, com muito amor. Mas e as 70 horas? Nenhuma inexperiência criativa fica impune diante de uma imensidão de imagens. Nenhum amor é inabalável com esse colosso audiovisual.

Falso problema, a princípio. O roteiro estava com uma estrutura fechada, geométrica quase, um guia sólido para o esqueleto narrativo. Caberia à montagem inserir as imagens observacionais do trânsito e das pessoas na rua, mas, sobretudo, encontrar o tempo das seqüências e estabelecer as passagens de alteração narrativa. Isso porque A Via Láctea, depois de um começo quase pelo fim, têm movimentos multidirecionais. Situações se repetem de forma diferente, às vezes com uma informação adicional, às vezes com menos informação, estabelecendo um percurso labiríntico, que, como o espectador perceberá quando puder assistir, só ganha sentido no final. Em relação a Tônica Dominante, a estréia em longa da diretora, há continuidades e alterações. Permanece a eleição de um protagonista em crise amorosa, conectado à arte (literatura, teatro), inclusive usando-a como intermediária da emoção, como linguagem pela qual os personagens se expressam. A diferença está na dinâmica de câmera, no andamento da narrativa, agora mais impactante, mais inquieta, empenhada em sacudir o espectador

Lina e Finotti tiveram de correr com a montagem para inscrever o material em editais de finalização lançados no primeiro semestre. O diretor André Klotzel, chamado como um consultor criativo, aprovou o primeiro corte. Essa mesma estrutura, com a mesma duração (hoje com 94 minutos), é finalista do Cine en Construcción, do Festival de San Sebastian, em setembro, um programa que apóia a finalização de primeiros cortes, com conseqüente pavimentação de uma carreira internacional – foram 75 inscritos e seis finalistas. Cinética teve acesso a esse mesmo corte em uma sessão particular no apartamento de Lina. Ela tem evitado mostrar essa “versão”, por estar ainda crua, sem som guia, sem marcação de luz, com gorduras a serem enxugadas posteriormente. Em um filme de fluxos, de passagem de um segmento a outro, de uma percepção a outra, o ritmo é um dos corações da obra. Lina tem consciência disso e, no retorno ao material, sabe por onde deve começar.

Mas como dosar a expectativa e a ansiedade diante de um segundo longa, sobretudo quando o primeiro, apesar de algumas recepções críticas, foi visto por um deserto de espectadores e a estigmatizou em certo sentido? Resposta com bom humor: “Mais pedreira que o Tônica Dominante, certamente não será”, promete, entre sorrisos. Por que pedreira? Basicamente, pela proposta, calcada em um cinema que, independentemente da valoração de cada um, escancara subjetividades (tanto a da autora como do personagem central, um músico não sem algum autismo em relação ao mundo).

“Paga-se um preço quando se quer fazer as coisas sem concessão e sem compromissos para além da obra”, afirma. Talvez por isso, por ser o segundo filme uma continuidade e não mais uma aposta na estréia, as dificuldades são maiores, ela acredita, porque o currículo pode depor contra, filiando-a a um segmento gerador de narizes torcidos. Nesse momento, portanto, é preciso esperar. E sobreviver ao tempo.

A VIA LÁCTEA
Direção: Lina Chamie
Com Marco Ricca, Alice Braga, Fernando Alves Pinto
Fotografia: Kátia Coelho
Montagem: Andre Finotti



editoria@revistacinetica.com.br

« Volta