O
Profeta (Un prophéte), de Jacques Audiard
(França/Itália, 2009)
por Fábio Andrade
E O Profeta, o que é?
Há
muita fumaça em torno de O Profeta, e apenas uma fração
dela é produzida pelo próprio filme. Parte determinante do debate
que ele motiva ressalta a necessidade de reforçar o entorno: obra
de grandes questões e abordagem supostamente realista, com prêmio
especial do júri no Festival de Cannes, concorrente francês aos
Oscar, etc. São características que,
mesmo conjunturais, mediam de forma sempre impertinente a relação
com obras que idealmente deveriam ser vistas por si e que, mesmo
conectadas a seu tempo e seu espaço, não se limitam a eles. Mas
há, é claro, a fumaça que o próprio filme produz, e essa sim tem
um efeito dispersivo que não deve ser desconsiderado. Pois, sim,
O Profeta é um filme de personagens imigrantes presos na
França – questão premente no engajamento atual dos humores franceses
– e que instaura algum meio termo entre o realismo estrito e uma
comedida estilização, se apropriando de figuras de linguagem caras
tanto ao cinema de festivais quanto aos filmes de gênero norte
americanos. Mas o fato de isso tudo estar lá esconde o que talvez
o filme tenha de mais marcante: O Profeta não é, de fato,
um filme sobre nenhuma dessas características.
O
que seria O Profeta, então? Esse questionamento parece
buscar algo de essencial, de evidência material nos planos e nos
rolos de película, mas a resposta que parece mais honesta é de
enorme volatilidade: depende de o que desejamos que ele seja.
Pois, embora exista margem real no filme para provocar leituras
as mais desviantes, é inevitável a sensação de que tais leituras
denotam um automatismo muito maior do que o filme realmente suscita
em sua construção. Jacques Audiard usa uma série de dispositivos
de leituras prontas para negá-los na maneira como ele constrói
a estrutura formal da obra. Em primeiro lugar, há um recorte muito
delimitado: o filme começa e termina junto com o tempo que Malik
(Tahar Rahim) passa encarcerado. O que vem antes e o que vem depois
lhe é pouco ou nada relevante; interessa-lhe este não tão breve
ínterim (5 anos em tempo ficcional; 155 minutos em tempo de projeção)
e é importante que ele esteja absolutamente desconectado do passado
e do presente. A personagem nasce e morre na prisão, mesmo que
sua existência escorra por ambas as bordas, e o que está nas bordas
escorra para dentro dela.
Essa forte deliberação é uma primeira maneira
de nos aproximarmos do protagonista, que é o coração do próprio
filme. A equivalência entre o tempo na prisão e a duração do filme
leva a uma série de associações: são ambos universos fechados
e isolados em certa medida da conjuntura exterior, nos quais adentramos
com preconceitos e orientações ideológicas que nem sempre têm
seu sentido preservado nos dois espaços/tempos. Malik é árabe
e isso determina seu futuro: é somente por ser árabe que a quadrilha
corsa se aproximará dele e o coibirá à ação. Por outro lado, a
relação que este "ser árabe" lhe garante transforma
todas as outras relações que ele estabelecerá na prisão, anulando
a si mesmo: Malik será protegido pelos corsos e isso garantirá
sua sobrevivência; em compensação, ele perde completamente sua
identidade. Para os corsos, ele permanecerá o árabe; para os árabes,
ele se tornara um corso.
O
Malik que conhecemos, portanto, não é uma coisa nem outra. É uma
personagem que tenta sobreviver ao próprio filme, modulando-se
à medida que os obstáculos surgem. É necessário determinar a finitude
de sua presença, pois é no presente que ele precisa sobreviver.
Malik entra na cadeia "zerado": é lá que aprende a ler
e escrever, a compreender a língua-mãe daqueles que controlam
sua vida, a saber a hora exata de usar essa informação para transformar
sua condição, a aprender a hora de ser fiel e a hora de trair.
É daí – e não do acidente que ele parece prever, já na metade
final do filme – que parece surgir o título de "profeta":
para sobreviver em tela, é preciso antever cada passo, prevendo
as armadilhas que o filme colocará em seu caminho, driblando cada
esforço de definição e de redução da personagem. Não à toa, quando
lhe perguntam se ele é o árabe que trabalha para os corsos, ele
responde: trabalho apenas para mim mesmo. O que é anterior ao
filme – tanto no personagem quanto no espectador – influencia
o que vemos, mas para sobreviver é necessário dosar esse conhecimento
prévio, tentando detectar quando ele é ferramenta, e quando se
torna entrave.
O
Profeta
herda do cinema clássico um esqueleto narrativo que, de tão abandonado,
hoje está mais associado aos video games. O desenrolar
em blocos (ou em fases) do romance picaresco ganha um caráter
metalinguístico, onde Jacques Audiard – metaforizado pela prisão,
que é a encarnação física do conceito de “diegese” – instaura
desafios que o protagonista precisa superar. Essa lógica quase
utilitarista, onde os artifícios são “soluções” e chegar ao final
do filme é de fato um “problema”, acaba por dar a O Profeta
um clima de cinema B, no qual a força e a inventividade das
soluções surgem da necessidade de revitalizar os clichês. Jacques
Audiard aborda este universo sem o tom paródico de quase todos
os filmes A que foram ditos B nos últimos anos (À Prova de
Morte, Fim dos Tempos, O Nevoeiro, Um Drink no Inferno, Old Boy
– todos eles muito mais próximos do macaqueamento cheio de segundas
intenções de um Acossado, do que de um Curva do Destino);
a lógica do filme e a da cadeia são a da sobrevivência a qualquer
custo, e Jacques Audiard reconhecerá os riscos desse entendimento
na sequência final, quando Malik sai da cadeira e é seguido por
um ameaçador grupo de carros que não conseguimos identificar.
Há, no filme, uma separação consciente entre o universo da ficção
e o mundo real, mas o mundo real está lá, como vigia, adentrando
o filme pelas pontas.
Essa prevalência da eficiência – onde vale tudo,
desde que se chegue ainda mais forte na sequência seguinte – serve
tanto para Malik quando para o próprio Audiard. O diretor pode,
inadvertidamente, ir do naturalismo ao sobrenatural, do gore
às cartelas estilizadas à Guy Ritchie sem qualquer aviso ou critério
aparente, sem que possamos compreender o porquê de certos personagens
merecerem o destaque das cartelas e outros, não. Embora exista,
aí, um subtexto bastante sintomático da vivência contemporânea,
Jacques Audiard se desvencilha do que há de mais problemático
nisto submetendo a eficiência à lógica do absurdo (como no cinema
de Tony Scott), pois as relações no mundo se tornaram absurdas.
E é justamente por essa eficiência tão direta, que se preocupa
mais em construir ritmo e envolvimento do que em discursar sobre
si mesma, que O Profeta reverbera dentro de um panorama
tão obcecado com seus próprios espirais, de filmes mais interessados
em teorizar sobre as imagens do que em de fato produzi-las. O
Profeta se torna destacável justamente pela obstinação limpa
que o faz esquecível no acender das luzes.
Agosto de 2010
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