Missão: Impossível - Protocolo Fantasma
(Mission: Impossible - Ghost Protocol),
de Brad Bird (EUA, 2011)

por Pedro Henrique Ferreira

O tal do impossível

Ao migrar do universo de animações da Pixar rumo à realização live-action na franquia Missão Impossível, o diretor Brad Bird se entrega rapidamente a um novo repertório de métodos, mas sobretudo ao trabalho sob uma égide de implicações novas: não se trata mais da órbita de possibilidades limitadas apenas pela imaginação que caracteriza a elaboração da animação. Há uma exigência inexorável de “presentificar”, isto é, de que, mesmo com a ajuda de gadgets tecnológicos, os atores da cena realizem o gesto, trilhem o ato que se desenrola frente ao aparato. Não é tão difícil ao menos supor que este problema estético estava na mente do realizador durante esta transição entre formatos técnicos, principalmente por não se tratar de uma possibilidade de experimentação destes novos ditames do set de filmagem, possibilidade que estaria em um projeto menor e mais pessoal. Bem ao contrário disto, esta transição aconteceu ao assumir uma das maiores franquias de ação do cinema hollywoodiano atual, cujo lema herdado da série é justamente o da realização humana do impossível.

Esta suposição nos leva a crer que o tema de Missão Impossível: Protocolo Fantasma, se não chega a ser plenamente metalinguístico, resguarda ainda algo de reflexivo: é o fazer artístico que estaria em jogo no conteúdo. Haveria uma espécie de espelho entre o episódio da série e o drama estético de Brad Bird. Em uma entrevista ao FirstShowing.net, o diretor norte-americano conversa sobre sua primeira experiência live-action e afirma que “durante as filmagens, quando as coisas estão dando errado e você tem muitas coisas para realizar em um único dia, é como o próprio Missão Impossível” e que, em realidade, “você está fazendo uma versão fílmica deste processo por que você tem um tempo limitado e um objetivo ‘meio que louco’, e se as coisas não funcionarem como você quer, você ainda precisa fazer algo”. Existe uma consciência por parte de Bird, ao menos em seu discurso, de que, como já fizera em Ratatouille, o quarto episódio da série, Missão Impossível: Protocolo Fantasma, caminha rente a esta reflexão sobre sua própria prática.

Cerca de trinta minutos do início do filme, há uma cena bastante significativa desta inclinação: quando estão penetrando os corredores do Kremlin, Ethan (Tom Cruise) e Benji (Simon Pegg) encortinam uma parede com um “pano mágico” que cria a ilusão para que o vigia não perceba a presença dos dois. Com isso, eles ganham acesso a um quarto cheio de arquivos cruciais para a missão. O aspecto metalinguístico fica ostensivamente claro: o vigia é um espectador de cinema, o pano é um dispositivo que cria uma ilusão de perspectiva em 3D, e o pequeno objeto que projeta ruídos para desviar a atenção do segurança é um sistema de áudio surround. Há, portanto, uma remissão por analogia a uma sala de cinema das mais modernas e ultrarrealistas. Mas mais importante do que a brincadeirinha é o fato de que Brad Bird não põe o espectador no lugar do segurança. O põe justamente no backstage, registrando a árdua tarefa dos dois agentes em erigir a armadilha mais do que o resultado da enganação propriamente dita. Ora, se interessa verdadeiramente o ilusionismo que a tecnologia nos permite, interessa também e sobretudo a ação humana em seu estado mais perene, por trás dos panos, que permite este ilusionismo. Interessa a forma pela qual se dá esta prática.

Marcado por esta forte consciência, o estilo de Brad Bird adquire muitas características que hoje poderíamos facilmente atribuir a um péssimo diretor: uma escrita retilínea que não dá espaço a ambiguidades, múltiplas interpretações ou mistérios; uma dramaturgia que não teme pôr um inventário de ideias na boca de seus personagens; uma disposição para gerar sentidos literais, menos pela fruição de suas imagens fugazes, e mais pela precisão como empilha argumento sobre argumento, criando uma estratégia sumamente de persuasão; montagens paralelas que vão da explicação da tese à apresentação de seus efeitos. Mas, aqui, nada trabalha em função de uma simplificação do discurso. Muito pelo contrário: se cada elemento singular é colocado com secura, o que realmente impressiona e traz complexidade à trama é a capacidade de articulação entre elementos dos mais longínquos; a capacidade, por exemplo, de reunir num mesmo objeto artístico, com sincretismo e placidez, temas que vão do fim do mundo à saga do homem errado, passando pela Guerra Fria ou pela relação homem-cibernética. A narrativa se torna complexa não pelos silêncios ou por aquilo que esconde de nós, mas justamente pela quantidade de explicações dadas numa velocidade tremenda que nos exige atenção a cada curvatura.

No fundo, a câmera de Brad Bird é uma caneta retórica que remonta à genealogia histórica do tema, tim tim por tim tim, retrocedendo o quanto for necessário para concluir a demonstração de sua hipótese. E o que nos demonstra, sempre com muita ironia, é justamente o quão errônea são as verdades cristalinas que nossa sociedade coloca sobre fatos complexos – a metodologia do diretor faz uma regressão um tanto foucaultiana ao nascimento das coisas, fazendo vir à tona os fantasmas que se camuflaram na História. Desta maneira, põe em suspenso nossos preconceitos, nossas ideias pré-concebidas, as palavras prontas da sociedade atual, vítima de um grande esquecimento. Ora, em Missão Impossível: Protocolo Fantasma, esta palavra ignorada é justamente a que titula a série, isto é, o “impossível”. É ela que, por reflexo na própria prática artística, vem à tona como tópico central.

Em Missão Impossível: Protocolo Fantasma, o olhar se volta novamente às formas básicas do gênero de espionagem, aos perigos da catástrofe atômica e às relações diplomáticas entre a Rússia e os EUA, revisitando os clichês e rumos tomados pelos demais episódios da série. Este retrocesso, porém, é caracterizado por um revisionismo, por uma tentativa de liberar sentidos que já teriam sido habitualmente tomados como dados cristalinos e redirecioná-los. Assim, o axioma verve da série se repete: habitamos uma sociedade de intrigas e enganações, criadora de falsos ícones, imagens ilusórias e máscaras que nos distanciam cada vez mais da verdade, fazendo os homens se perderem em si mesmos.

Como bem apontou Cleber Eduardo em texto sobre o filme anterior da série, na ausência de um chão ou território de verdade no qual se fixar, o herói Ethan Hunt move-se somente por razões pessoais, e que “informações nos são vetadas, entre as quais o que vem a ser a tal pata de coelho. Para descobri-la e tê-la em mãos, Ethan corre de país em país, voa de um prédio para outro, passa sebo nas canelas e torna-se o faz-tudo a todo instante, mas sem nunca saber o que está por trás dos acontecimentos. Age sem consciência; é pura ação. E age apenas por questões pessoais – primeiro por uma ex-aluna, depois pela esposa, jamais por seu governo ou por suas convicções.” Ora, a transformação mais primária que acontece no quarto filme é que o herói perde esse deslocamento apriorístico que o torna uma máquina de pura ação inconsciente. Nele, é injetada uma forte dose de consciência e claridade, tanto em suas metas quanto no conjunto mirabolante de traições e enganações da sociedade na qual está imerso. E o que motiva o herói não é mais a salvação de seus afetos pessoais, mas a redenção da humanidade como um todo. Na missão de impedir o fim do mundo, a motivação pessoal, na forma do amor ou da vingança, é contraproducente.

O herói não é mais pura-ação inconsciente, mas um elemento ativo dentro de um esquema (ou plano) maior de salvação da humanidade. Brad Bird se foca nos aspectos desta atividade e sua inserção dentro de uma lógica maior, de um projeto ideal (e, porque ideal, também um desígnio mental, imaginário) que, em plena realização, impediria esta ameaça atômica deslanchada por um cientista lunático que crê num fatalismo, na extinção da civilização como um processo natural e interno a ela. Como os demais episódios da série, há muitas ocasiões em que Missão Impossível: Protocolo Fantasma empurra seus agentes em direção a becos sem saídas. São diversos os momentos em que o cuidadoso plano elaborado pela IMF parece se reduzir a cinzas por detalhes e idiossincrasias imprevisíveis (por exemplo, uma mulher que chega antes do horário à negociação ou a paixão de um sheik por mulheres casadas). Nestes obstáculos vertiginosos que surgem para desviar a narrativo rumo à exaustão, à inevitabilidade de derrota por parte dos agentes da IMF, é onde se operam os milagres impossíveis, pequenos gestos de genialidade, os hunchs inseridos no intervalo entre a perfeição do plano e os imprevistos de sua realização.

Missão Impossível: Protocolo Fantasma ajunta inúmeras cenas grandiloquentes de missões que incluem, por exemplo, invadir uma fortaleza russa em poucas horas, escalar o maior prédio do mundo com luvas de aderência cujas baterias falham, realizar uma troca de mercadorias sem as possuir, escapar de um tiroteio num carro afundado ou enxergar o rosto do inimigo por trás de uma máscara digital no meio de uma tempestade de areia. No interior destas laboriosas ações é que se fazem perceptíveis os pequenos lapsos de genialidade do homem, a necessidade inexorável de agir espontaneamente, jogar-se de um abismo para depois ver se dá certo, sobrepondo-se às adversidades e repondo “o plano” previamente estabelecido em seus eixos corretos. O filme de Brad Bird se torna, ao todo, uma grande investigação/demonstração destes pequenos milagres que acontecem por trás dos grandes desígnios, quando toda capacidade humana de concretizar o impossível parece vítima de uma grande paralisia.

Nesta transição entre duas formas artísticas de realização – a rigor, a animação e o live-action – o diretor norte-americano percebe a gritante diferença entre a livre-imaginação da cena animada (que facilmente realiza o impossível) e todas as constrições físicas que uma cena filmada traz à tona. Do interior deste abismo, ele extrai seu tema e busca a denominação do lema da franquia, isto é, do impossível, demonstrando uma fé absurda na capacidade de construção e realização do homem. E afinal, há mesmo melhor forma de enfrentar uma época cética, em que tanto se fala de fim da história, fim do cinema e fim do homem, do que justamente fisgar o sobrenatural do ato humano no átimo em que acontece? Assim, Ethan Hunt encarna o ratinho Remy que, se não chegava a ser um espião disfarçado, era ao menos um puppetmaster, alguém que executa tarefas árduas num lugar recôndito, sempre “atrás da cortina”, distanciado do mundo na mesma medida em que agindo em nome dele, para salvá-lo da descrença (encarnada em Ratatouille pelo crítico de gastronomia, e aqui pelo terrorista) quando há uma teleologia que parece sofrer de paralisia e apontar o fim.

Janeiro de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta