plantão do YouTube Puma,
arte e capitalismo contemporâneo por Cezar
Migliorin Como em qualquer campanha de material
esportivo, o comercial da Puma começa com
um atleta se preparando para correr. Entretanto, durante sua preparação, há uma
cartela que ocupa a tela e que diz: «Porque você corre?» O homem começa a correr
em um lugar desértico. «Não há multidões aqui», diz a voz off. Nesse momento,
o homem pára repentinamente e começa a correr no sentido contrário. «Não há fãs
ou competição. Não há linha de chegada.» Então porque eu corro? «For
the love it.» Pelo prazer de fazê-lo.
E o comercial termina. O
que a marca vende é ação sem fim específico, sem objetivo final, desconectada
da competição. A superioridade não é em relação a adversários, mas à própria idéia
de uma competição. Nem mesmo o percurso a ser corrido tem início, meio ou fim,
ele é sempre um lugar qualquer, um caminho qualquer em que o atleta pode voltar
a qualquer momento. Ele não está nunca indo de um lugar a outro. A própria idéia
de um lugar se desfaz nesse anúncio da Puma. O lugar que o homem corre é um espaço
desértico, vazio. Mas falar em deserto ainda é fazer uma conexão demasiadamente
forte entre a natureza e este espaço onde ele corre. Na verdade esse atleta sem
competição ou adversários corre na própria imagem. Não que a imagem seja adversária;
de forma alguma. Ela é o seu habitat. A competição e o desempenho
ainda traziam uma materialidade demasiadamente grande, uma narrativa e um uso
para o material esportivo que está sendo oferecido. Pois aqui não é o uso que
está sendo oferecido, nem mesmo o uso de uma certa imagem de marca que o consumidor
pode consumir. Ou melhor, o que o comercial da Puma oferece não é a possibilidade
de consumir ou se apropriar de uma modo de vida pelo objeto, como tradicionalmente
aprendemos a compreender a publicidade moderna. Mas de se apropriar da possibilidade
de inventar o objeto. O objeto não é um autônomo, não tem
vida nem significado sozinho. Ele é capaz de incorporar à sua estrutura as informações
que lhe depositam seus usuários. O tênis da Puma tem que ser o que Puma te propõe
em termos simbólicos, mais o que você quiser que ele seja – o fato de ele ser
um objeto que se coloca no pé é apenas um detalhe. O consumidor, assim como o
espectador da obra de arte, é chamado para fazer parte do modo como o objeto pode
afetá-lo. Ambos são chamados a "serem" com os objetos e não a "serem"
o que os objetos propõem ou a sentir algo que já está contido como possibilidade
no objeto. Não há objeto, não há espaço, não há ponto de
chegada, não há narrativa. A marca se encontra na tentativa de uma absoluta suspensão
de qualquer objetivo previamente determinado para o consumo. A liberdade é o consumo,
poderíamos dizer de maneira apressada. Mas esse consumo apregoado pelo capitalismo
contemporâneo parece mais complexo. Ele não vive sem a criatividade do consumidor
para que novos objetos possam ser produzidos e, ainda mais complicado, ele não
vive sem a criatividade dos consumidores no ato de seu consumo. Os produtos do
capitalismo imaterial, as imagens por eles geradas – de uma marca, por exemplo
– sempre têm seu uso de maneira mais ampliada que o que é dado como possibilidade
na própria marca. Capitalismo relacional em que nem os produtos nem o consumidor
são peças acabadas, mas indivíduos que se fazem com os objetos. Tanto
melhor é um objeto quanto maior for sua capacidade de se indeterminar na relação
que estabelece com seu público, ou seja, o objeto deve ser inventado com o público.
O consumo individual de um objeto é uma forma de inventar novos objetos já que
a cada uso há a possibilidade de aparecer um novo objeto; desde que os criadores
da Puma esteja nas ruas, nos bares e na noite. As lojas da Puma, por exemplo,
são concebidas como «uma maneira dos consumidores interagirem com a marca», nas
palavras de Antonio Bertone, gerente global da marca. A marca não impõe ou assujeita,
ela se torna um dispositivo relacional. PUMA is the sport
brand that 'mixes it up' (Puma é a marca esportiva que "mistura")
- base da campanha da Puma para jogos olímpicos de 2008. O
presidente da Puma, Jochen
Zeitz, perguntado como fazer para manter a criatividade de seu pessoal, responde :
«Você tem que viver a criação. Palavras no papel não valem nada. Você tem que
viver tudo você mesmo.» Zeitz sabe do que está falando. Assumiu a Puma com 30
anos de idade e em 9 tirou a empresa de anos de prejuízo para se tornar concorrente
das gigantes Nike e Adidas. Para Zeitz e para o capitalismo relacional: antes
de tudo a experiência. Não a experiência do acumulo, mas a experiência que nasce
dos encontros não programados, dos caminhos sem ponto de chegada, das vivências
desfuncionalizadas, das relações arriscadas, do descontrole em relação ao cotidiano,
da que ainda não se institucionalizou. A Puma é patrocinadora, por exemplo, das
seleções de futebol de Camarões
e da Jamaica. O que se tornou valor para capitalismo contemporâneo (imaterial,
cognitivo) é algo que não é raro – diferentemente do capitalismo industrial –
ou seja, a experiência ou pelo menos a possibilidade de experiência. Imaginemos
quantas Jamaicas ou Camarões são possíveis como sinônimo de experiência para os
criadores da Puma. Os trabalhadores também não são peças
acabadas que irão colocar em prática na empresa o que aprenderam na vida ou na
universidade. São experimentadores: «Contratamos pessoas que desejam mudar sempre»,
diz Zeitz na mesma entrevista. A experiência é sempre algo que se dá com o outro,
em relação, no confronto com a diferença e por isso Zeitz pode afirmar que a Puma
é como um organismo em constante transformação, que contrata pessoas com a maior
diversidade possível para que elas possam se influenciar mutuamente todo o tempo
em um sistema sem hierarquias – palavras de Zeitz. Produzir a si e produzir no
trabalho são uma mesma atividade baseada na experiência, na comunicação e na contínua
criação. Nada então diferencia a arte das estratégias do
capitalismo contemporâneo, já que ambos estão interessados no que pode aparecer
de imprevisível das relações sem hierarquia em que as obras se apresentam como
dispositivos relacionais? Tanto ao capitalismo quanto à arte interessa os modos
de vida contemporâneos. É a partir daí que produzem os objetos que podem ressoar
com os indivíduos e com outros objetos. Uma obra de arte em um museu deve ter
a possibilidade de entrar no universo de quem a vê deslocando o que pode ser sentido
e pensado. A obra não diz o que sentir ou pensar, mas pode ser um shifter de
subjetividade, como escreveu Guattari. Desse modo, não há uma maneira efetiva
de calcular o que pode um objeto de arte ou um objeto no capitalismo imaterial,
ele deve ter a liberdade de ressoar, na rua, no bar, na galeria e no museu, ser
como um germe que possibilita maneiras de ser ainda não mapeadas, desprendida
de suas conotações discursivas e estéticas. O espectador e o consumidor devem
se tornar co-criadores. Estamos em plena biopolítica que absorve o poder e a resistência,
a criação e sua utilidade. Distorcer a produção do capitalismo é uma forma de
reinventá-lo, qualquer uso dos objetos do capitalismo é uma maneira de criar junto
com ele – a internet talvez seja o melhor exemplo. Marcar
a diferença entre as estratégias do capitalismo contemporâneo e a arte é complexo,
mas possível. Acredito que esta diferença é uma operação temporal. A arte é um
processo de desubjetivação, saída de si, pela experiência estética, pelo pensamento.
A arte atua como um dispositivo em que o processo de troca, invenção e destruição
de identidades não pode parar. Enquanto a obra de arte se coloca em uma ressonância
sem limites com o espectador e se mantêm como arte pela impossibilidade de estagnar
essa ressonância, o papel de uma marca no capitalismo imaterial é encontrar o
momento de intervir na ressonância cristalizando e tornando valor de mercado as
virtualidades da mercadoria. Faz-se a passagem da rua e da experiência que os
usuários fazem com os próprios produtos para as lojas – normalmente fora de shoppings
e nos lugares mais caros das cidades – e para as celebridades – Madonna utilizando
Puma durante uma turnê. Ou seja, a Puma é co-criadora de novos modos de vida,
mas essa criação sem controle só pode fazer sentido se estancada no momento certo.
Esse é o papel da empresa, participar da liberdade e controlá-la.
Um controle que não impõe um modo de ser para quem utiliza a marca, mas distribui
para quem tem visibilidade – a mídia, as celebridades, os bairros ricos – o que
é funcionalizável da criação e que a marca captura nos modos de ser mais heterogêneos.
A arte e o capitalismo não se diferem pelo modo de surgimento de seus objetos,
mas pelo modo que o capitalismo controla a sua circulação. A tarefa da arte não
é profanar os objetos e dispositivos do capitalismo, mas impossibilitar a interrupção
da circulação em torno dos objetos, seja pela Puma, seja pelos museus.
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