in loco - cobertura do Festival do Rio

A rainha e as plebéias
por Eduardo Valente

A Rainha (The Queen), de Stephen Frears (Inglaterra/França/Itália, 2006) - Panorama
Fora de Jogo (Offside), de Jafar Panahi (Irã, 2006) - Novas Imagens do Irã

Nos créditos iniciais do novo filme do iraniano Jafar Panahi surge um crédito que ajuda a entender bastante bem a lógica pela qual o filme funciona: para além de assinar direção, produção e montagem, Panahi é creditado também pelo “conceito”. Pois, Fora de Jogo (foto ao lado) é isso: um filme de conceito, antes de tudo – assim como não deixa de ser o caso em A Rainha. No primeiro, o conceito era aproveitar a realização de uma partida de futebol importante em Teerã (o jogo entre Irã e Bahrein que decidiu uma vaga na Copa de 2006) para urdir uma trama ficcional em torno deste evento real. No segundo, é penetrar na vida rotineira da família real inglesa, nas condições nada rotineiras dos dias seguintes à morte da Princesa Diana. Se ambos os conceitos firmemente plantados em acontecimentos reais garantem o interesse a priori que os filmes podem ter para atrair o espectador, o bom resultado alcançado nos dois casos só se explica por termos à frente dos projetos cineastas que conseguem ir além da “sacada”, e resolvem dedicar seus filmes a uma atenta observação da dinâmica das relações entre seus personagens.

No caso de Panahi, a primeira coisa a chamar a atenção é o jogo inteligente que ele faz com o protagonismo dentro do filme. Já a partir das primeiras imagens, ele cria uma constante troca de foco no filme, onde sempre que pensamos que estamos acompanhando a história deste determinado personagem, o filme desloca (com sutileza, o que é importante) o centro da cena para um outro que acaba de entrar em cena. Com isso, ele consegue colocar no filme com sucesso a idéia de uma narrativa para além da individualização dos dramas – sem, com isso sufocar o filme em “significados maiores”. Esta combinação de leveza de registro e amplitude de escopo é o grande interesse do filme, que só se completa pela real atenção que dispensa a cada um dos seus personagens, não importando em que “lado” eles estejam (os personagens dos policiais são especialmente felizes, neste sentido).

Leveza e amplitude também são palavras aplicáveis à A Rainha, filme que sofria de um perigo ainda maior de super-significação pelo simples fato de se dedicar a um retrato íntimo das principais autoridades inglesas (não só a rainha, o príncipe Charles e o resto da família real, como até mesmo o então recém-eleito Tony Blair). Frears, assim como Panahi, dribla todas as armadilhas do seu conceito por lançar um olhar ao mesmo tempo nada cerimonial e plenamente respeitoso a estas figuras. Com isso, um filme que pode facilmente ser considerado “mitificante”, é de fato o mais subversivo possível por cumprir um movimento tão profundo quanto simples: o de humanizar a monarca inglesa (e todos à sua volta no círculo do poder). Ao humanizar estas figuras, que são sempre tratadas como “além do humano”, ele faz um trabalho muito mais forte de “colocá-los em seu lugar” do que um filme tolamente “paródico” seria capaz de dar conta.

Tratar a família real e o primeiro ministro na intimidade do lar, chegando ao cúmulo de encenar momentos absolutamente pessoais de cada um deles, é uma opção incrivelmente corajosa, sem ser tola (e tão mais impressionante e corajoso por fazer isso com figuras ainda vivas e ocupando hoje as mesmas posições de poder). É preciso destacar ainda o uso que o filme faz das imagens reais da época, onde a Princesa Diana, conhecida justamente pelo seu caráter terreno (“Princesa do Povo”) termina ocupando a posição de entidade “maior que a vida”, mitificada, que assombra uma família real que é colocada em sua dimensão humana – uma inversão nunca menos do que fascinante.

Não é nenhum exagero afirmar que, mesmo que as jovens iranianas que protagonizam Fora de Jogo tivessem nascido em Londres, ou que a monarca inglesa de A Rainha fosse transplantada como um aiatolá em Teerã, ainda assim a distância que separa os universos em que se passam os dois filmes seria intransponível. Mas, curiosamente, em ambos os casos o que está “do outro lado” é essencial para a trama que se desenvolve em cena: seja as ordens do Estado religioso iraniano, que reprime as meninas no seu desejo de ver um jogo de futebol, sem que nem mesmo os responsáveis pela aplicação desta regra entendam muito bem o porquê; seja os sentimentos do “povo inglês”, cuja resposta à morte acidental da Princesa Diana (acima) é o grande motor das intrigas palacianas inglesas.

Entre os dois filmes, o que fica claro é que um lado é sempre refém e parasita do outro, e a impossibilidade de mediação direta entre eles garante o caráter “trágico” (no sentido dramatúrgico) que movimenta os micro-universos que acompanhamos. Estes micro-universos, obviamente, funcionam segundo regras absolutamente distintas, e por isso mesmo são captados de maneiras opostas pelos cineastas: Jafar Panahi usa o registro da urgência, com a câmera digital na mão em todos os momentos, conseguindo mesclar com felicidade as condições reais e encenadas (com a inestimável ajuda da edição de som); já Stephen Frears trabalha com o brasileiro Affonso Beato numa fotografia que tenta dar conta, em seus enquadramentos e formas de se aproximar com os personagens, da cerimônia e jogos de poder e aparências típicos do alto círculo de poder, ao mesmo tempo em que incorpora as cenas de documentação de época. Assistindo-se os dois filmes, fica forte a sensação de que a rainha entenderia muito bem as moças iranianas e vice-versa – mas que a tragédia do poder no mundo é que isso não possa acontecer.


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