Quincas Berro D'Água, de Sérgio Machado (Brasil, 2010)
por Rodrigo de Oliveira

O cinema popular ladrão-de-galinha

Há uma ambigüidade apenas sugerida por Jorge Amado na novela que deu origem a Quincas Berro d’Água (e muito por restrições da própria natureza da literatura), que na adaptação para o cinema feita por Sérgio Machado surge bastante forte: por mais óbvia que seja a morte daquele velho boêmio, espalha-se uma crença entre seus amigos de que ele ainda esteja vivo, e ao longo de todo o filme flutuamos entre a confirmação de que este é apenas um acordo tácito de sobrevida estabelecido entre todos aqueles que o amavam e que não conseguem ajustar sua imagem pulsante à rigidez do caixão, ou simplesmente uma confusão honesta com o real – muito ajudada por um sorriso safado nos lábios que Paulo José mantém ao longo de toda a história. A verdade da imagem do filme é absoluta, acompanhamos os minutos que precedem a morte, reconhecemos aquilo como fato, e em nenhum momento há algum truque em cena que nos faça duvidar. Mas, ainda assim, a verdade interior à imagem, essa estabelecida nas trocas de diálogos e olhares entre os personagens, aparece sempre mais impositiva. E vemos a vida, mesmo que os olhos testemunhem o contrário.

Essa, por si só, já seria uma grande contribuição do filme ao prolongamento das idéias de Amado (e não é algo automático, se pensarmos que a adaptação que Walter Avancini fez para a televisão, em 1978, trazia o mesmo sorriso em Paulo Gracindo, mas dali tirava apenas um morto-feliz, e não um morto-vivo). Mas existem outras agendas em curso neste Quincas, e elas dizem muito pouco respeito ao diálogo com o espírito da novela ou a essa capacidade do escritor baiano de escrever ficções que entravam imediatamente para o inconsciente coletivo brasileiro, como se Amado mesmo nos fizesse duvidar do real óbvio diante de uma invenção muito mais poderosa e justa que isso. Há o esforço do cinema de qualidade, retrabalhado aqui quando se tem um diretor “sério” por trás de uma tentativa “ligeira” de comunicação popular. É ainda um filme autoral, parte de um projeto de cinema nascido do próprio Sérgio Machado, e não de uma produtora contratante qualquer, mas aquilo que imaginaríamos que o diretor de Cidade Baixa pudesse agregar a esse tipo de projeto surge sempre imponente e auto-celebratório na tela.

A síntese desse trajeto recai no personagem de Irandhir Santos, o Cabo Martim. Líder da tropa de párias chefiada até então pelo comandante Quincas, o ator parece encarnar um drama que não encontra eco em nenhuma outra parte da narrativa, pesando a mão nos olhos marejados e na voz trêmula, como se assistíssemos as imagens dos bastidores da gravação de sua voz para a narração de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, mas se permitindo ainda o barroquismo do Quaderna de A Pedra do Reino. É como se não se confiasse que a firmeza de sentidos da trama desse morto retornado à vida fosse potente o bastante enquanto discurso sobre o amor fraternal, as perdas, a revolta da marginalidade contra o poder estabelecido, e então se precisasse pesar a mão no drama para se fazer claro.

É difícil entender também por quê o filme insiste tanto no contraste entre a burguesia empedernida (que Quincas abandonou no passado, num flashback duvidoso) e esta possibilidade de vida nas bordas da sociedade, uma vez que o pendor moral do filme aponta sempre na direção desta última. Por que perder tempo com as amigas da filha riquinha e seu marido paspalho, quando não se crê num centímetro da imagem desse universo? Porque existem outras preocupações em Quincas, e elas dizem respeito diretamente a esse diálogo maior com platéias não-específicas, o que significa pingos nos is, e o que significa, em último grau, filmar coisas nas quais não se acredita em nome de alguma maquinação narrativa ou facilidade de acesso àquilo que realmente interessa aos realizadores.

Mas o caminho para se chegar a isso, ao que mencionamos no primeiro parágrafo, é atropelado por um punhado de seqüências de ação que confundem agilidade com atabalhoamento, justamente quando havia material ali para que o foco estivesse justamente nas trapalhadas desses protagonistas de uma comédia de aventuras, e não no atestado de qualidade de uma engrenagem pirotécnica que-não-deve-em-nada-ao-que-vem-de-fora. Que os planos turísticos insistentes do Elevador Lacerda surjam em mais profusão do que os closes em Luis Miranda (o único ator irretocável aqui, além de Paulo José) só confirma esta inclinação perigosa para um tipo de cinema que tenta adentrar os grandes esquemas de produção – lugar ocupado na trama, curiosamente, pelos personagens burgueses que mais se rejeita – mas que ainda se comporta como os simplórios ladrões de galinhas do filme, inábeis e trôpegos – com a diferença que estes últimos pelo menos parecem estar se divertindo de verdade.

Julho de 2010

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