Raul: o Início,
o Fim e o Meio,
de Walter Caravalho (Brasil, 2011)
por Andrea Ormond
Homens e deuses
A trajetória de Raul Seixas na cena cultural brasileira não é das mais difíceis de se compreender: aluno de Elvis Presley, surfista na onda beatlemaníaca, desbundado místico nos anos 70. Decadente, quase caricato, na animosidade dos 80. Porém, sob esse esquematismo, paira uma riqueza de detalhes suficientemente bons para mesmerizar qualquer espectador. Raul Seixas era um sujeito que era um mundo. Não à toa, sua imagem evoca simbolismos, atmosferas, ideais. Só se grita “toca Raul!” em saraus e convescotes quando não deslancham, parecem um tanto caretas. O homem só se volta para Deus na crença de uma resposta além de suas limitações e dificuldades.
Raul: o Início, o Fim e o Meio
poderia afundar nessa transcendência, nessa configuração
de um santo. Mas escolhe, com leveza, o caminho inverso: desmistifica
tanto a figura do roqueiro baiano que quase sentimos sua dor.
Palpável, obscura, dilacerante, a dor de Raul Seixas não
era somente a do pâncreas mutilado, do fim em uma quitinete
na rua Frei Caneca. Era, também, a agonia de um indivíduo
que perdeu o bonde do tempo. Que estava e não estava; um
self sem poder ser mais. Talvez outras gerações
um dia lhe devolvessem a glória e o reinventassem (como
de fato fizeram). Acontece que o calendário marcava 1988,
89: governo Sarney, inflação galopante, pragmatismo
existencial. A história desenha-se inteira para chegar
neste anticlímax. O cheiro doce da diabetes, que suas mulheres
sentiam no ar, brilha no contraponto ao sonho. Uma incrível
performance de “Maluco Beleza”, revólver apontado
para a cuca, era prenúncio do cowboy fora da lei:
“aí, seus babacas, eu não vou me entregar.
Vou até o fim”. E é mirando o fim que a narrativa
se desenvolve e nos faz esquecer de nós mesmos. Tudo vira
Raul e seu mundo. A certeza de que ele vai morrer (por nós?)
acaba sendo o motivo para entendermos sua trajetória.
Adepto
de um capetismo esperto, de um satanismo moleque, Raul Seixas
emula, ora vejam, uma espécie de Jesus heterodoxo. Diferente
de Arnaldo Baptista, que também já foi “documentarizado”,
as imagens de Raul não sugerem ruptura, surpresa, mas uma
tragédia clássica e plena. Arnaldo pulou pela janela
do hospital, sobreviveu e virou uma criança pré
mutante. Raul envelheceu e morreu, aos 44, com cara de 80. “Aos
jovens, o conselho: envelheçam!”, dizia Nelson Rodrigues.
Raul, aos 40, era quase Confúcio. Resgatado do limbo por
Marcelo Nova – de quem alguns entrevistados bizarramente
desconfiam – teria morrido ainda mais velho e ainda mais
Confúcio sem as cinquenta apresentações que
fez ao lado do jovem discípulo.
Nova, Paulo Coelho e o maravilhoso Cláudio Roberto nutrem pelo ex-parceiro a mesma devoção que os simples mortais. Aliás, tirando a primeira mulher e a primeira filha, ninguém faz qualquer reserva à convivência com o músico. Quem força a barra para não descambar no lugar comum é a edição, esperta o suficiente para evitar outra armadilha: cenas altamente conhecidas de arquivo, já disponíveis em youtubes e afins. Um fã ou pesquisador de fé entende que cinco minutos de coisas inéditas compensam bastante o valor do ingresso. E Raul: o Início, o Fim e o Meio oferece bombons sortidos desses momentos. Voltando ao doc sobre Arnaldo Baptista, sua performance ensandecida em “Sunshine”, circa 1978, para mim, valeu longas sequências de platitudes truístas, com o perdão do pleonasmo.
Outro bom escapismo biográfico são as picuinhas do sexo. No caso do harém de Raul, chegamos ao estado de arte: mulheres deliciosas, de todas as cores e credos, ainda em plena forma neste distante futuro de 2012, confirmam em minúcias o quanto aquele barbudo feioso tinha de borogodó. Através delas, Raul – que só teve filhas – nasce, cresce e decai. Até a empregada que o descobriu morto, na cama do apartamento no Edifício Aliança, não trai seus instintos e dialoga com certa maternidade, com certo sentido de responsabilidade amorosa. Se os parceiros aceitam ser pais cruéis – Nova diz que fazia “a feira” para Raul se alimentar; Coelho não tem remorsos por ter lhe apresentado às drogas – esposas e namoradas trazem uma tônica de mães russas, principalmente Kika Seixas. Tal elemento inusitado fascina quem imaginava Raul Seixas a essência do misantropo.
Um defeito do documentário – aliás, de grande parte dos perfis sobre personagens dos anos 60 e 70 – é não investigar mais a fundo a ideologia por trás dos mitos. Quando falo de ideologia não entendam como cenas ginasianas de Geraldo Vandré nos festivais ou fotos da passeata dos Cem Mil. O que estava em jogo, no caso de Raul e Paulo Coelho, era algo muito mais complexo do que um simples combate ao governo militar. Suas provocações têm raízes na Escola de Frankfurt ou na crença de que, se Deus está morto, restava a aspiração de construir um paraíso na terra. Os amigos devem ter se levado bastante a sério, até diluírem o dogma no sol abrasador de Ipanema, entre uma carreira de pó e outra. Digo isso pois muitas daquelas inquietações e afirmações foram somente abortadas, nunca respondidas. Luzes poderiam ser jogadas aqui e ali. Ao menos o satanismo – doença infantil do ateísmo – ganha uma pequena digressão no depoimento de Toninho Buda e do próprio Coelho, cínico e inteligente que só.
“Faz
o que tudo queres pois é tudo da lei” tende a ser
orkutizada no Facebook, chancelada até por quem tem medo
do chifrudo. Em Raul: o Início, o Fim e o Meio às
vezes podemos nos deparar com pequenas surpresas, alimentarmos
certas omissões, mas não podemos acusar o diretor,
Walter Carvalho, de fazer apologia ao que milhares de adoradores
repetem diariamente: Raul é carinho, Raul é amor.
Seria o pecado de todo profeta anticristão tornar a si
mesmo um novo Cristo? O filme tangencia a dúvida. Prefere
vê-lo como alguém que se degrada em São Paulo
filosofando, chapado, que o Rio de Janeiro “é uma
mentira”. Que é carregado pelo porteiro, que toca
rock alto para provocar a esposa, que se defende das próprias
contradições sob a epítome de “metamorfose
ambulante”. Feliz do Deus que, na metamorfose, transforma-se
novamente em homem.
Março de 2012
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