in loco - cobertura dos festivais
Reality, de Matteo Garrone (Itália/França, 2012)
por Raul Arthuso
Ser
e parecer
Reality é uma fábula cômica sobre
um homem acometido por uma crença no simulacro: Luciano,
acreditando ser observado pela produção do Big Brother
da Itália, pensa ter de ser alguém melhor e se despoja
de sua vida em favor do simulacro da realidade observada. A loucura
crescente do protagonista é o fio condutor do filme, expondo
seu lado cômico e absurdo, realçado a todo instante
pela trilha de Alexandre Desplat (que, em alguns momentos, assemelha-se
de modo bizarro a trilhas de filmes como Esqueceram de Mim
e outros contos natalinos) e pelos coadjuvantes do tipo italianos-histéricos
que proporcionam alguns dos instantes mais engraçados de
todo o filme.
Só que o pano de fundo dessa fábula é sujo,
pobre. Luciano vive com a família num cortiço em
Nápoles, administra uma peixaria que só serve de
fachada para seus pequenos esquemas como muambeiro, utilizando-se
de senhoras da vizinhança necessitadas de dinheiro. Não
que isso não combine com o sentido de uma fábula
– afinal, uma fábula como a de Cinderela, só
poderia se passar num cenário similar – mas serve
aqui, mais que como pano de fundo, à função
de relembrar que, por trás do aparente, há o que
se é. Em uma cena-chave, Luciano é levado a pedir
conselhos ao padre do bairro para esquecer essa história
de Big Brother. O padre, de forma bastante patética, relembra
uma passagem do novo testamento sobre ser e aparentar, tentando
com isso esclarecer a Luciano o simulacro patológico em
que se meteu. Essa tensão do simulacro é central
dentro de Reality, na medida em que o filme parte de
oposições entre frente e fundo. A fachada (a fábula
cômica, a peixaria, o pai de família trabalhador)
é o que esconde o que há no fundo (a pobreza do
bairro, o trambique, o muambeiro que quer ser rico e famoso).
Reality
tenta tirar, ou melhor, revelar uma “verdade” pela
exposição de todos os simulacros: o Big Brother
(e a televisão por extensão) é um falso paraíso,
um simulacro capaz de penetrar na vida das pessoas e alterar a
realidade; a riqueza, na verdade, é vacuidade; a casa é
um estúdio; a Cinecittà é apenas um terreno
com várias fachadas. Revela-se o simulacro, revela-se a
“realidade” - ou uma delas, a de Luciano. Há
uma idéia aqui muito parecida com Preciosa, de
Lee Daniels: a de que a exposição das fraquezas
e mazelas de seus protagonistas, aliada a algumas ferramentas
convencionais associadas a um extremo realismo (câmera na
mão próxima às personagens, atores não-profissionais,
montagem de fagulhas de cena, uma negação à
encenação), basta para absorção da
vivência de um lugar ou de uma situação. Em
ambos, a situação das personagens é uma demonstração
e não uma busca ou uma observação, ainda
que o jogo estético armado emule essa intenção.
É, mais uma vez, a questão de ser e aparentar: enquanto
se coloca como um filme realista de observação de
uma vivência perturbada por um simulacro, Reality
é um simulacro dos mais controlados.
Outubro de 2012
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