in loco - cobertura dos festivais
Guerra Sem Cortes (Redacted), de Brian De Palma
(EUA, 2007) por Paulo Santos Lima
O
uso é o que faz da imagem uma imagem
A quem conhece
a obra de Brian De Palma, as imagens de Redacted causam um certo estranhamento.
Estranhamento por serem assinadas por um cineasta que sempre filmou com uma elegância,
uma sincronia entre os planos, uma suavidade nos passeios de câmera nos travellings
e nos cortes, que se faz oposta ao tipo de imagens deste seu novo longa: grosso
modo, bastante ásperas, opções visuais feiosas, com cortes abruptos, vinhetas
entrecortadas, brincadeiras gráficas etc. O motivo é coerente: De Palma segue,
aqui, pela mais premente natureza da imagem em movimento, que é a da representação,
e, por necessidade, reconstitui uma variada gama de imagens “reais” captadas no
Iraque sob invasão americana e despejadas na internet. Imagens que tinham como
princípio capturar as coisas daquele lugar em polvorosa, tentando reter e reproduzir
uma experiência tão brutal (a da guerra nefasta) que faz com que seus intuitos
“reprodutivos” sejam discutivelmente limítrofes. Assim sendo,
em princípio, parece que De Palma, ao fazer uma “reconstituição da reconstituição”
e ampliar as camadas de leitura de algo anterior à imagem (a imagem pela imagem,
neste caso), aprofunda uma discussão que está em boa parte de seus filmes (Femme
Fatale, Blow Out, por exemplo) sobre o que a imagem revela, o que ela
traz do objeto que reproduziu fotoquimicamente. Mas, o que nesses filmes fica
circunscrito na diegese, estabelecendo contato mais com códigos (de semelhança
universal) do que com eventos anteriores e sempre lidando com material ficcional
(mesmo em Pecados de Guerra, onde a encenação é somente baseada em fatos
reais), em Redacted o diálogo se dá com um material que se pode chamar
de “real”, “documental”, captado direta e anteriormente. Assim, a questão não
é mais o modo de construção da imagem, se é para nela acreditar ou não (parece
que sim, pela “fidelidade” da reconstituição, mas isso é algo que este texto voltará
a comentar no final), mas sim o efeito desta imagem, sua função – e, mais importante,
a consciência do aparato de captação. É
com essa consciência compartilhada com o espectador que De Palma, com habilidade
meio mágica, bruxa até, consegue criar não poucos momentos ilusionistas. Se a
câmera do soldado videomaker mexe pacas, se as imagens dos americanos tomando
conta de um posto de comando são tidas em Redacted como trechos de um documentário
francês, se o diálogo entre soldado filho e seu pai nos é mostrado como num papo
filmado do msn, se o formato de blog traz imagens da esposa do distinto soldado
McCoy (que não quis de modo algum participar da barbárie promovida pelos outros
dois soldados), tudo isso nos causa um estranhamento que é logo naturalizado.
Uma consciência de que há alguém filmando que é quebrada (literalmente como uma
bomba) quando um infeliz levanta-se de um sofá e se explode ou quando uma família
iraquiana é metralhada pela imbecilidade equívoca dos soldados de Bush. A câmera,
em ambas as cenas, sofre o impacto, salta e cai no chão, perde o ponto de vista
pela esquiva da destruição – parece que estamos num telejornal, e o tal “realismo”
(reconstituído por De Palma, lembremos sempre!) se faz mais magnético para nossas
emoções de espectador. Há, claro, uma dramaturgia nisso tudo,
porque teremos, entre os soldados filmados pelo soldado aspirante a cineasta Angel
Salazar (cujas imagens ficaram na rede, meio clandestinamente, e ele próprio foi
para o além – porque, mesmo inocente, foi assassinado por iraquianos revoltados
com a barbárie de seus colegas) e outras tantas imagens emuladas da internet e
de câmeras de vigilância, os bons e os maus e a relação de uns com os outros.
Algo questionável, até, porque seguindo essa estética que parece tão “verdadeira”
que faz a atenção se voltar para o uso e militância dessas imagens, De Palma acaba
narrando uma história: a seqüência de estupro é filmada em verde de câmera de
captação noturna, e antes de Salazar sair correndo daquele teatro de horror, sua
“câmera-ponto de vista” zapeará a selvageria, quase mostrando o ato inicial do
estupro, ou mesmo quando Salazar tem sua cabeça cortada e isso nos é mostrado
através de um vídeo captado pelos vingadores que lembra um snuff movie
(a ponto do diretor precisar jurar que a cena fora encenada). Não
há dúvida que há uma ética em De Palma com essas imagens que estavam espalhadas
na rede, mas impossibilitadas de serem utilizadas com os fins pretendidos por
seus vários “captadores”. Inúmeros soldados americanos, ativistas etc, filmaram
as atrocidades no Iraque, mas suas imagens tiveram como único fim a clandestinidade,
e daí que De Palma recupera-as à vida – afinal, a reprodução do diretor não desfigura
o material previamente captado, até porque ambas as imagens são reproduções, configurações
miméticas de situações “reais”. Ou seja, ambas possuem a mesma natureza. Assim
sendo, a dramaturgia faz aquilo que a seqüência final de imagens fotográficas,
reais, tiradas por gente que estava lá, não poderia: cria uma dialética sobre
o que acontece(u) por lá. As fotos são apenas a idéia única, mono (importante,
mas menos engenhosa que a encenação de De Palma) da brutalidade. A
crença nessas imagens (não em seu conteúdo temático em si, mas no que elas dão
conta da experiência real de se estar no inferno da invasão americana no Iraque)
torna-se algo bastante crítico. Quando Redacted mostra, ao final, McCoy
de volta aos EUA, com namorada e amigos numa mesa comemorando seu retorno, as
perguntas são justamente sobre seus feitos heróicos lá. Ele chora, devastado,
e comenta sobre o horror que foi aquilo. Uma voz no extracampo, possivelmente
a de um amigo com máquina fotográfica na mão, passa por cima da dor do rapaz e,
como se fosse cego e surdo, lhe diz para sorrir e celebrar seus atos heróicos
para tirar a fotografia. A foto, já estática, com McCoy meio chorando e sorrindo,
com queridos ao seu redor, traz uma outra leitura para quem desconhece o que veio
antes: um soldado feliz e emocionado por reencontrar os amigos, aliviado e saudável.
McCoy demonstrava, nesse instante fotográfico, que tudo lhe havia desmoronado;
era assim um homem devastado. A imagem não só não dá conta da experiência como
pode desvirtuar o sentido desta experiência. Vale aqui um
parêntese e citar Dália Negra, no qual as imagens de um filme pornô serão
uma janela movediça e profunda, completamente enigmática, cifrada, muito aquém
dos eventos que vitimaram a mocinha assassinada – mas, por outro lado, serão o
catalisador das investigações da polícia. Imagem para culto, investigação e prospecção,
tão dúbia quanto única para se chegar à verdade. Não é, assim, muito diferente
neste Redacted, cujas imagens reproduzem, limitadas, algo do “real” – e
será seu uso, sua leitura, que permitirá algo além dos fatos, algo além da reprodução
em si, algo mais a ver com a natureza humana, ou a história recente da humanidade. Muito
bacana Brian De Palma assumir essa limitação da imagem em si, o que, de fato,
coloca seu Redacted como um exercício engenhoso de uso da imagem. Porque
sem uso (o que, no caso do audiovisual, é tornar a imagem visível a quem queira
ver), a imagem não é imagem. E isso, De Palma sempre fez muito bem e com todo
o respeito a quem vê seus filmes. Novembro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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