in loco - cobertura dos festivais
Verão em Red Hook (Red Hook Summer), de Spike Lee (EUA, 2012)
por Thiago Brito

Keepin' it real

Quando Spike Lee volta para o Brooklyn pela sexta vez, ele o faz com um intento extremamente claro e político. Desde o princípio do filme, percebe-se o que está em jogo. Silas, vulgo Flik, (Jules Brown), negro, cresceu em Atlanta. Para o verão, sua mãe achou de bom tom deixá-lo na casa do avô - uma forma de o menino, que nasceu em um ambiente relativamente novo no ponto de vista da tradição de sua família, poder sofrer um certo choque com suas raízes. O avô de Silas, o pastor Enoch (Clarke Peters) da igreja batista Little Heaven, esforça-se para apresentar Red Hook ao menino, encucar-lhe os ensinamentos de Deus, e ao mesmo tempo legar a tradição de seu ambiente, de saber de onde veio, compreender a distância que existe entre Atlanta e Brooklyn. No entanto, praticamente todos os argumentos de Enoch são insuficientes para Silas. Algo simplesmente não encaixa direito na cabeça do menino. Duas gerações se olham e não se percebem integralmente. O mergulho para os dramas subjacentes está apenas começando.

O ambiente de Red Hook é, de início, pouco inspirador: tudo parece estanque, parado no tempo, vazio. Isto pode se dever por Red Hook ser um bairro peculiar: inacessível por metro ou vias expressas, o local sobrevive no imaginário nova-iorquinho como um lugar onde uma possível “old fashioned” Nova York ainda sobreviva. Lee trabalha sua locação a partir de uma contradição instigante. Temos, de um lado, personagens-caricaturas que perambulam por suas ruas, qual fantasmas, que se esquivam da rapeize gangsta, que não invadem territórios "tomados", alguns até mesmo parecendo fantasmas de um tempo pretérito (Mookie, entregando a sua pizza desde a estréia do cineasta em Do the Right Thing), ou francamente desiludidos, como Deacon Zee, um bêbado decepcionado com a pouca visão de seus pares quando a oportunidade de crescimento se provou possível, ao não investirem em ações bancárias e se contentarem com um investimento aparentemente local, na empresa Ikea, velha conhecida do bairro. Mas, ao lado da decepção, também existe o que é distinto: a tradição, o amor da comunidade, do lugar onde todos se conhecem, onde alguns se perdem na poeira da pobreza e da exclusão social, e outros se erguem no amor divino e na celebração diária da pequena comunidade evangélica de Little Heaven. Lee começa a elaborar uma teia complexa onde o embate entre a tradição e a nova realidade se realiza também no embate e na trajetória do pastor Enoch e seu neto Silas.

A princípio um homem correto, salvador de todos, aquele que se propõe o trabalho de religar a comunidade com suas raízes e espantar o fantasma da crise econômica e da falta de perspectiva, Enoch tem sua vida desvelada aos poucos, como uma bomba relógio. Desejoso de encontrar um ponto de empatia com seu neto, o pastor inicia uma peregrinação pautada na força da palavra de Deus como caminho da salvação necessária. Munido de seu iPad, Silas, ao contrário, começa a apreender o bairro e seu avô através do registro constante. Enoch vê neste passatempo uma perda de tempo. A salvação não está lá, a imagem, afinal, é falsa, ou apenas uma convenção - “Jesus não é negro?”, diz Silas para a imagem de Cristo pendurado em seu quarto, na casa de Enoch. O pastor desembaraça a questão como se fossem os passos da criança que começa a caminhar e, volta e meia, tropeça. O que importa, para ele, é dar a seu neto o caminho que lhe trouxe à luz e endireitou sua vida - dar a ele o que lhe foi negado de início na vida.

Mas Silas não sente que precisa ser salvo. Os erros pretéritos não fazem parte de sua realidade e os extravios que caracterizam os guetos de Brooklyn não arvoram em seu horizonte. Longe do clichê, Silas é o expoente de um novo personagem negro, do peixe fora d'água que, como coloca sua amiga, Chazz, "tem sotaque de branco". A problemática, aqui, se instaura: até que ponto uma lógica prevalece? De um lado, a palavra de deus, do outro, a imagem como forma de apreensão e contato com o mundo. E uma questão também se impõe: o abismo que se aponta entre Enoch e Silas é o abismo geracional que promove um novo paradigma? Por que Silas não precisa ser salvo? E Lee eleva ainda mais a problemática: estaria Silas errado ou correto? O que acontece, de fato, quando esses dois mundos se chocam?

Se existe algo que caracteriza as estruturas narrativas das crônicas de Brooklyn de Spike Lee é seu uso pouco usual do ritmo paulatino, languido, que aos poucos se sobrepõe e explode em uma energia desconcertante, com a força de reinstaurar toda a lógica precedente. Se existe, no filme, algum tipo de tentativa de encontrar as saídas pertinentes a toda uma comunidade - por exemplo, o habitual rechaço da marginalidade e da agressividade em prol de atitudes mais pacificas, talvez alienantes, que promovam uma integração equalizada entre todas as partes, formando o que poderíamos chamar de uma "comunidade em paz, auto-suficiente e nobre" - no momento em que as máscaras caem e a brutalidade das forças se chocam, isso tudo desaba. Todo e qualquer critério de juízo é deixado de lado e somos entregues a um estado de absorção sem chão e sem certezas - ou melhor, somos entregues à consciência de que as contradições e forças subjacentes ao jogo cênico e estético proposto vão muito além da simples evocação dos mesmos em termos de representação. Spike Lee, no auge de sua vontade enquanto artista de fazer-nos entrar de fato em contato com o objeto narrado, nos empurra para o abismo original de onde a história possivelmente foi concebida, ou pelo menos inspirada: não, não é tão simples assim. O pastor Enoch, sempre tão correto e tão comedido, esperançoso e bondoso, recebe um fantasma do passado que o obriga a se reencontrar consigo mesmo e arregar para a câmera o desespero de seus medos. Esse desnudamento de Enoch promove o também desnudamento de todas as contradições que ainda fazem parte de Red Hook – o momento em que todos os supostos caminhos de salvação caem por terra e temos, novamente, apenas a rua, o parque, e a noite diante de nós. É, em grande medida, o gesto final e anárquico de Mookie em Do The Right Thing.

Esse novo estado narrativo, aquele do desnudamento, é também o momento em que, finalmente, as duas gerações se conciliam provisoriamente. Enoch precisa falar sobre o que lhe ocorreu, precisa narrar sua vida pregressa, precisa expurgar as imagens que vividamente refluxam à sua mente e ao filme. Silas/Flik aponta seu iPad e filma as confissões de seu avô. Existe, neste momento, a convergência de duas pessoas diferentes que, finalmente, encontram um espaço diverso em comum para se verem, se perceberem - “Red Hook é o lugar onde todos vão para se esconder. O que é que você esconde, Silas?”.

Red Hook. O antigo Brooklyn. O rap, o basquete, o coro evangélico, os sotaques, os termos, as ruas, o piche. Por anos esquecido – anos de marginalidade, de violência, de exclusão. Aparece o presidente negro, os novos horizontes, as novas possibilidades, mas também vem a crise, as novas dificuldades, a retração. E, com isso, uma nova geração, um novo momento, uma nova pergunta: como reparar o antigo e como encontrar o novo? Quando Chazz dá a Silas seu crucifixo para guardar e lembrar dela em Atlanta; quando Silas lhe devolve uma imagem sua em seu iPad, para que ela olhe e pense nele, existe uma ponte maravilhosa que nos recebe como um coice pois, “Eu gostava de você, sim”, diz Silas para Chazz. E ele não se esconde, e conversam, e percebemos o momento em que os problemas de uma geração não se extrapolam necessariamente como problemas da próxima geração. Enoch ignorado e ridicularizado em praça pública – o falso profeta da salvação que não veio. É, enfim, quando uma comunidade e seu imaginário se expandem.

Outubro de 2012

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