Marcas
da Vida (Red Road), de Andrea Arnold (Inglaterra/Dinamarca, 2006) por
Cléber Eduardo Promissora
estréia A diretora inglesa Andrea
Arnold é uma estreante tardia, mas que, desde o primeiro curta-metragem realizado
aos 39 anos, não perdeu tempo e ganhou notoriedade. Com o terceiro curta de sua
miúda filmografia, Wasp, ganhou de 37 prêmios internacionais (inclusive
o Oscar de curta de ficção e a Palma de Ouro em Cannes), e abriu
as portas para a estréia em longa. E quando essa aconteceu,
com este Marcas da Vida, Andrea, com 45 anos, já era uma “novata” consagrada
antecipadamente, pois estreou em competição no Festival
de Cannes e levou o Prêmio do Júri. Fato
é que, nesta estréia, Andrea Arnold revela notável habilidade com a imagem, não
apenas para semear um estilo e uma assinatura (com a criação e manutenção de uma
atmosfera visual suave e elegante em seu clima de thriller), mas, sobretudo,
para propor um jogo com a própria imagem, sem dúvida questão central de seu filme.
A cineasta lança-se numa dinâmica de revelação, omissão e resignificação, em uma
espécie de avanço e recuo diante do significado da imagem, lançando mão de algumas
situações observadas por sua protagonista e pelos espectadores (ela sabendo mais
que nós na platéia), primeiro para lançar suspeitas sobre determinado personagem
e determinados acontecimentos, depois para relativizar as suspeitas e o próprio
sentido moral do relato. A solitária
Jackie (Kate Dickie), funcionária do sistema de monitoramento de câmeras de vigilância
em Glasgow, nos é apresentada, em seus primeiros minutos em cena, como mulher
amorfa. Impassível na transa com um colega em um automóvel, ela só reage com sinais
de vitalidade, moderadamente, quando flagra, pelas câmeras espalhadas pelas ruas
da cidade, algum gesto afetivo, de beleza cotidiana – ou ainda, de desejo. É por
meio da mediação das câmeras que ela se relaciona com a vida. E é justamente
quando se excita com a imagem de um casal transando em um terreno baldio que Jackie
identifica um ex-presidiário conectado com o passado dela e sobre o qual saberemos
mais apenas em conta-gotas. Nessa primeira revelação da imagem (da identidade
do criminoso para Jackie), Andrea Arnold baixa as cartas que, com a evolução da
narrativa, irão se firmar como sua estratégia. Em um momento inicial, o homem,
visto de costas na câmera de vigilância, segue uma moça pela rua. Interpretando
o que está vendo, Jackie aciona a polícia. No entanto, como a própria imagem irá
desmentir, a perseguição, na verdade, é um jogo erótico e, em segundos, o casal
já está se agarrando. Encerrada a transa, o suspeito de crime inocentado pela
câmera, vira o rosto e, mais uma vez, a imagem muda de sentido. Trata-se de um
criminoso aos olhos da personagem – e consequentemente, aos nossos olhos. Outras
operações como essa, de construção e desconstrução de sentidos na imagem, serão
recorrentes em Marcas
da Vida. Poderiam
se tornar meras soluções conceituais, sem vitalidade nas experiências mostradas,
se as situações em si não pulsassem de tensão, insegurança, desejo e expectativa,
com alta possibilidade de imersão completa da parte do espectador. A tática da
cineasta é colar nossa percepção a de Jackie, de modo que vejamos, até um certo
ponto, tudo como ela está vendo e interpretando. Isso só vai mudar lá diante,
próximo ao final, quando teremos de reavaliar tudo, reconfigurar as cartas em
jogo e, emancipando-se dos valores da protagonista, criar nosso próprio juízo
(moral inclusive). A ambiguidade é a substância central de Marcas da Vida,
inclusive na maneira de se mostrar a postura de Jackie, que tem desconfortante
e fascinante relação de desejo e repugnância com Clyde, seu objeto de atenção,
de quem se aproxima perigosamente. Extensão
das câmeras de vigilância com as quais trabalha, Jackie segue o suposto vilão
com intenções claras de vingança, a princípio observando-o como uma documentarista
observacional, depois passando para uma relação interativa, até chegar ao cúmulo
de entregar-se fisicamente para ele. Nesse momento, profundamente erótico pela
extensão da seqüência e pelo realismo do sexo praticado em cena, a ambigüidade
explode. Se posteriormente veremos que a transa faz parte de seu planejamento
(o que faz dela, além de documentarista com ou sem câmera, também uma roteirista),
é perturbador lidar com a reação excitada dela ao contato com Clyde – ou com a
simulação verossímel de seu prazer, com um nível de detalhamento de suas contrações
abdominais e da pélvis, raramente vistas no cinema. Por
conta de todas essas ambigüidades, o encaminhamento para o desfecho de Marcas
da Vida parece destoante, um tanto óbvio na maneira de transitar entre o empreendimento
da vingança e a meia volta para o processo do perdão (a partir da relativização
do estigma de Clyde e de sua própria culpa no trauma de Jackie). Há nas situações
finais um esforço um tanto demasiado para nos mostrar a necessidade de transformação
da protagonista e a própria mudança de sentido do aparente vilão aos nossos olhos.
Essa disposição humanista, terapêutica, não sem mensagem clara no plano final,
com ela agindo na vida em vez de ser observadora e controladora das experiências
diretas (não mediadas pela câmera), enfraquece o ponto final de Red Road,
mas não tira seus altos méritos sedimentados até então. Tampouco deixa de ter
uma beleza singela embalada ao som de Love Will Tear Us Apart, a triste
e comovente canção de Ian Curtis/Joy Division, que surge em uma versão contemporânea
adocicada. Cabe notar que este
filme é parte de um projeto intitulado Advance Party, idealizado pelo cineasta
dinamarquês Lars Von Trier, e que consiste em três filmes ambientados na Escócia,
com os mesmos nove personagens, mas assinados por diretores diferentes (Andrea
Arnold, Lone Scherfig e Anders Thomas Jensen, os dois últimos signatários do Dogma
95). Trata-se de mais um desafio-dispositivo tão ao gosto de Von Trier, que, em
2003, já havia proposto uma variação mais radical da modalidade ao compatriota
Jorgen Leth, em As Cinco Obstruções,
cuja missão era refazer cinco vezes seu filme The Perfect Human (1967),
mas com restrições estéticas e de produção diferentes em cada uma dos remakes.
Andrea Arnold, no entanto, estréia à toda em Marcas da Vida e mostra que
o interesse por seu cinema é bem superior ao de um determinado conceito coletivo.
E, de quebra, reivindica expectativas maiúsculas em relação à continuidade de
sua filmografia. editoria@revistacinetica.com.br
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