O Último Rei da Escócia (The Last King of Scotland),
de Kevin MacDonald (EUA, 2006)
por Paulo Santos Lima

Câmera na mão para domar a besta africana

Acompanhada por uma montagem selvagem, a câmera na mão é quem apresenta a África de O Último Rei da Escócia. Uma África que se confunde com Idi Amin Dada, o alucinado (ou alucinante?) ditador de Uganda, grande personagem deste longa de Kevin Macdonald. Uma África que se emaranha com a África dos filmes B dos anos 40, com As Minas do Rei Salomão, com a literatura de Hemingway e, mais precisamente, com os mais recentes Falcão Negro em Perigo, Hotel Ruanda e Diamante de Sangue. Uma África, assim, vista por um inevitável olho estrangeiro (porque de cineastas não-africanos, claro) e com um ranço típico dos anos 50 – revestido de algo da nossa contemporaneidade, o tal denuncismo político.

O fuzil crítico de O Último Rei da Escócia aponta para um Idi Amin agente do passado, dos anos 70, quando seu governo (1971-1979) fez de Uganda um delírio do genocídio e do desenvolvimentismo. Mas atira contra a África de hoje, porque o galante ditador nada mais é que uma tremenda representação ilimitada dele próprio, feita pelo extraordinário ator norte-americano Forest Whitaker. Uma parte pelo todo, ou, mais que uma metonímia, um verdadeiro portal que nos dá acesso àquilo que o audiovisual vem nos mostrando hoje com suas imagens sensacionalistas que decalcam um rótulo “exótico” na desgraceira africana. O continente que, pelas letras e visuais de há muito, é um mundo perdido como a ilha do Jurassic Park de Spielberg, repleto de ameaças, infernos e aventuras sem fim.

No filme de Macdonald, é também um passeio turístico – e arriscado – feito por um doutor escocês recém-formado, Nicholas, que acaba caindo nas graças do galante ditador, que o nomeia como seu médico particular e conselheiro. É a Nicholas que o filme segue próximo, inclusive enveredando para o thriller assim que ele perde o encanto pelo presidente e tenta pular fora daquele lugar. Ele funciona como o americano que faz o meio-de-campo entre o olhar de Maio de 68 e o de hoje em Os Sonhadores de Bertolucci – mas há um olhar condenatório do filme sobre a gestão Idi Amin desde o início, antecedendo a consciência adquirida pelo jovem médico no terço final da história. É como se a câmera ficasse de mãos dadas com Nicholas, sem tirar os olhos de Idi Amin.

Nicholas (ou o ator James McAvoy, que seja) é um ser de imagem esdrúxula, apagada. Forest Whitaker, na tela, é banhado em ouro: uma presença, uma representação proto-chanchadesca que lembra o J.B. da Silva (Pagano Sobrinho) de O Bandido da Luz Vermelha, o Doktor Plirtz (Jô Soares) de A Mulher de Todos ou o Venceslau (Jardel Filho) de Macunaíma – a África é, assim, a chanchada humana. Esse entrelaçamento focal, estabanado, cria efeitos. O principal é que o olhar turístico do filme, sob a segurança do safári, teme e se encanta pelo Idi Amin-África, pela besta africana (a do universo africano). Voltamos, aqui, à câmera na mão: Idi Amin nos é apresentado como um mamífero, uma Conga, aquela mulher que se transforma em gorila e ameaça avançar contra a platéia.

Não será ele, mas a câmera é quem colará a ínfimos centímetros do seu rosto. Fará uma dança frenética, usará chicotes, entre recuos e aproximações que farão Idi Amin crescer na tela. Treme sob forte convulsão, tem seus passeios interrompidos bruscamente pela montagem seca, adota punhado de pontos de visão no espaço. Uma câmera que faz um zapping turístico sobre os passeios do médico europeu nos créditos iniciais para daí ficar chapada com a primeira (e assustadora) aparição do King Kong. Nem é tanto a besta-fera Idi Amin simbolizando todo um estado de coisas africano, mas sim a decupagem animalesca dos cortes e da câmera na mão quem revela o julgamento que O Último Rei da Escócia faz sobre a África: um espaço da sub-humanidade, que exige uma selvageria visual para representá-lo na tela como imagem cinematográfica.


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