Reidy - A Construção da Utopia,
de Ana Maria Magalhães (Brasil, 2009)

por Andrea Ormond

Inconteste

O grande problema dos documentários brasileiros nos últimos anos é a ligeireza e o reducionismo com que certas questões complexas são abordadas. Já o efeito colateral, varia. Alguns tornam-se elegias estúpidas, puxa-saquismo explícito. Outros parecem feitos sob medida para a exibição em auditórios de colégios ginasiais, no fim da qual a professora lembra aos alunos de que a redação sobre o tema é obrigatória e deve ser entregue na quarta-feira, valendo um ponto na média final.

Reidy, a Construção da Utopia
, de Ana Maria Magalhães, está no meio do caminho entre puxa-sacos e didáticos. Ao fim da experiência, temos a certeza de que ouvimos falar de um santo, cercado de pervertidos por todos os lados. O retratado era “sonhador”, “utópico” e o sentido da realização dessa utopia guarda somente aspectos positivos. Não que Affonso Reidy seja criatura abominável, longe disso. Mas sua obra é tão criticável quanto a crítica que o documentário constrói à cidade que o acolheu. Embora mostre um Rio de plástica fabulosa, resta a impressão de que não fazemos muito jus ao talento de Reidy. Ao tomar partido, esse estilo de narrativa nunca deixa pensar variantes. Até Paulo Francis, pela batuta de Nelson Hoineff, já virou vítima de um mundo injusto e cruel. Some-se a isso todas aquelas idiossincrasias ocultas no discurso de arquitetos modernistas, sobre o passado ruim que foi modificado e salvo por uma "verdade" revolucionária e, pronto, temos um mecanismo auto-adulatório fechado em si mesmo.

Homens guardam dimensões complexas; artistas, então, devem ser relativizados ao máximo. O Museu de Arte Moderna carioca é bonito, porém atravessar aquela passarela que leva até ele pode custar a grana ou a vida de um incauto. Por que não demonstrar tal situação patética da arquitetura? Nelson Hoineff, citado acima, fez história justamente com o lado humano da informação, no falecido “Documento Especial”. O Conjunto Pedregulho, em Benfica, deve ter briga de condomínio. Por que não ouvir melhor os moradores, em vez das longas intervenções de Paulo Mendes da Rocha, que em certo momento pira na batatinha e encarna uma espécie de Gilberto Gil da prancheta, sugerindo – com lágrimas nos olhos – que os monumentos de Reidy e os jardins de Burle Marx poderiam ser recondicionados em outros planetas e até nos anéis de Saturno (?!?)?

Alô, alô, Terra chamando: de volta à realidade, o quadro fecha em um coqueiro, jaqueira, ou seja lá o que for. Ao fundo, alguém comenta sobre os “frutos” deixados pela obra do mestre. Sim, verdade. E com os dedos entalados na poltrona, cheios de mal-estar, nossa benevolência vai para o recôndito espaço sideral, colonizar as tais novas fronteiras urbanísticas. Outro quadro, de artistas de rua peruanos, ilustra uma discussão em torno das civilizações indo-americanas. Suando em bicas, naquele calor pachorrento do centro do Rio, eles viram uma espécie de símbolo forçado. Uma provável metáfora da América, do Novo Mundo, de seus tipos e maravilhas. Como se Machu Picchu se materializasse em cada homem de traços indígenas, mesmo que esteja na mais tresloucada fauna e flora do Largo da Carioca. Mesmo que esconda os desejos, inconfessáveis, de negar a cartilha do bom selvagem latino-americano. Tomar uma coca-cola estalando a zero grau, por exemplo.

Em Reidy, a Construção da Utopia, o discurso do melting pot, do Brasil, da busca do novo, encontra inúmeros obstáculos, portanto. Que o arquiteto abandonou o ecletismo historicista na Escola de Belas Artes – em busca, justamente, do “novo” – não é uma constatação fascinante. Era, antes, tendência que vingou não apenas na arquitetura, mas no pensamento no século XX. Reidy também se embrenhou na política, pediu demissão, entregou o boné, deixou planos irrealizados. Entre eles, um apêndice no MAM: um teatro que veio a ser concluído em desobediência ao projeto original. Pior dos pecados, criticado a torto e a direito. Ao usar personagens de maneira estanque – sejam os mambembes incas, o coqueiro que dá coco, a arquitetura sagrada –, o documentário elabora uma engenhosa contradição: existe a rebeldia plausível e a rebeldia que não se pode aceitar. Algo como o lado certo e o lado errado da corda carbonária. O perigo está em ficar levitando pela enseada de Botafogo ou pelos grotões operários, ouvindo a sereia de um determinismo que a esta altura já deveria dormir, terrivelmente cansado. Repetindo a máxima do xará de Reidy, o escritor Affonso Romano de Sant'Anna, a melhor homenagem que podemos fazer aos mestres contestadores de ontem é contestá-los hoje.

Novembro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta