Os Reis da Rua (Street Kings),
de David Ayer (EUA, 2008)
por Paulo Santos Lima

Um filme do seu momento,
mas não de momentos

O nome de James Ellroy não está à toa nos créditos de Os Reis da Rua: escritor americano que assinou o roteiro de pelo menos um célebre longa (Los Angeles – Cidade Proibida) e autor do livro que serviu de base ao Dália Negra de Brian De Palma, Ellroy é uma “marca de qualidade” dentro do gênero policial. Mais precisamente, na produção cinematográfica que prossegue com uma tradição fundada 30, 40 anos atrás: a dos filmes policiais distópicos, cujos universos diegéticos são insolúveis e seus personagens em situações-limite e falidos em seus projetos de reorganizar e limpar as coisas. Uma tradição que, menos e mais, está presente em praticamente toda a produção do gênero. Tradição que, poucas vezes ou atenuadamente, já aparecia no cinema americano dos anos 50 (as fitas de Fuller, o Aldrich de A Morte num Beijo), e que, nos anos 60 e 70, adota estilos mais modernos e radicaliza a exposição – como em Bullitt (68), Operação França (71), Serpico (73) e Chinatown (74). Tradição perseverante, sem dúvida, mas que hoje, na maioria dos casos, apresenta-se diluída em seu discurso estético. Tradição que, em vez da veemência, claro posicionamento sobre o mundo que transfigurava para a tela; ou um deboche bastante perturbador presentes nas décadas atrás, adota hoje o cinismo. Tradição “atualizada” e presente neste Os Reis da Rua.

O filme expõe um sistema mal funcionando, ilustrado a partir do LAPD (Departamento de Polícia de Los Angeles) para aludir o macro: o sistema legal, a sociedade acomodada, a corrupção generalizada etc. O norte é sobremaneira dramatúrgico, pois o filme puxa a nossa atenção ao drama pessoal do detetive Tom Ludlow (Keanu Reeves), que, somados as várias vodcas tomadas ao volante da diligência policial, a solidão e franco transtorno no semblante deste homem, criam um caudaloso material dramático. O que, por outro lado, espraia as reais motivações violentas deste personagem, que é um policial horripilante em seus excessos de justiçagem (exterminar hediondos traficantes, por exemplo) que ultrapassam o estado de Direito. Seu superior, Jack Wander (Forest Whitaker), o acoberta, já que Tom é peça útil na limpeza da criminalidade, o que é um grande estandarte para o alpinismo político do chefe. Mas não só: o filme também parece resguardar seu personagem (como, coincidentemente talvez, fazia Los Angeles – Cidade Proibida com seu truculento tira interpretado por Russell Crowe).

O fato, em Os Reis da Rua, é que Tom Ludlow age a respeito de algo que o antecede (a morte da mulher) e que precede o próprio filme: a insolubilidade dos problemas do mundo, referência que nós, espectadores, inevitavelmente fazemos. Há nisso uma ambigüidade malandra, um comentário esgarçado sobre a insolubilidade do mundo, além de um final cínico que nos mostra algumas justiças calmantes (como exterminar o vilão da trama), mas gritando a nós que é um filme “esperto” (porque não mata o vilão do mundo, o que aproxima este longa de Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, pois ambos os protagonistas são devidamente sagazes, safam-se da foice do mundo e ainda saem por cima, avistando a desgraceira alheia a uma certa distância). Tom olha triste a degradação moral e inoperância do sistema, e não com o sorriso canalha do Buscapé da fita de Meirelles, mas o mar no qual navega este Os Reis da Rua é o da dramaturgia, da trama, e daí a necessidade do cinema ser arterial, aqui.

Alguns longas da blaxploitation eram extremamente mal dirigidos, toscos mesmo, mas ainda assim havia uma premência do momento, um fazer cinematográfico inédito nos riscos, escorregões, garranchos de câmera e tudo o mais ao que estavam sujeitos aqueles cineastas que se posicionaram com câmera a mostrar algo outro. Longe do ineditismo ser o diamante do cinema, mas, hoje, sobretudo com um discurso completamente alinhado ao seu tempo histórico (no qual “tudo já foi visto e conhecido” ao passo em que se vive sob verdades múltiplas – portanto, sob verdade nenhuma –, em que tudo se relativiza e é visto a partir das complexidades, o que dificulta qualquer certeza), é necessário, então, que o cinema honre um filme. Se um Sidney Lumet (em Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto, 2007), Martin Scorsese (Os Infiltrados, 2006) e David Mamet (Spartan, 2004) conseguem algo, jamais é pelo ineditismo, mas sim pelo momento – o momento da experiência cinematográfica, com a câmera atenta a um certo momento do ator na cena, uma mise-en-scène interessante, um argumento que consiga trazer algo de inusitado do modelo usual.

David Ayer, diretor de segunda, mais renomado pelos roteiros de Dia de Treinamento, Velozes e Furiosos e do horrendo S.W.A.T., não tem olho para usar a câmera, fazer escolhas para, assim, construir suas cenas – ou a cena, o que é bastante complicado num filme de dramaturgia. Ayer, claro, está em seu momento histórico, mas não fazendo o seu momento histórico. Ou isso pouco importa, pois ao passo que Scorsese dialoga com uma história do cinema sob riscos sérios ao seu corpo-cineasta, Lumet parece fazer o mesmo filme há séculos e, de repente, nos últimos anos, nos trouxe tanto essa fita de 2007 como o extraordinário “teatro-filmado de tribunal” Find me Guilty (2006). Hoje, o que restou é justamente aquilo que sempre foi o sangue nas veias da realização cinematográfica, que sempre esteve entre os primeiros e recentes filmes policiais críticos, entre os avant-garde do gênero e suas reproduções: o salto bem dado para o mergulho idem. E não é um problema de câmera errada, mas de erro de câmera. Erro de onde e para quê estar.

Maio de 2008

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