in loco - cobertura dos festivais

A Religiosa Portuguesa (idem),
de Eugène Green (Portugal/França, 2009)
por Filipe Furtado

Ascese

Poucos cineastas têm fãs tão devotos quanto Eugène Green. Seus cultores ainda são poucos, mas se posicionam diante das suas imagens límpidas com fervor religioso. Green segue pouco conhecido aqui no Brasil, onde nenhum dos seus fascinantes trabalhos anteriores foram exibidos. Ele faz parte daquele clube exclusivo de cineastas cujos filmes parecem deslocados no tempo e cujas imagens existem para fora de qualquer discussão sobre o contemporâneo. Não deixava de ser inevitável então que Green voltasse sua câmera um dia para Portugal, país onde esta qualidade atemporal aparece sempre em primeiro plano, país pródigo em produzir cineastas como ele. E A Religiosa Portuguesa é, entre muitas coisas, um filme sobre este encontro com Portugal.

A fascinação por Lisboa e pela cultura portuguesa está no centro dos interesses de Eugene Green no filme. Num primeiro momento estamos diante quase de um travelogue pelas ruas de Lisboa. A cidade visivelmente afeta a atriz francesa de raízes portuguesas interpretada por Leonor Badalque, que está ali para rodar um filme de arte baseado em um clássico português do séc.XVIII. Há uma qualidade mística à cidade que a fascina, muito bem servida pela facilidade com que Green é capaz de conjurar fervor em suas imagens. O cineasta não filma Lisboa como turista, mas também não o faz como local. O que tanto lhe interessa na cidade (assim como na cultura portuguesa em geral) é o que a cidade tem de eterno e a possibilidade de torná-la material e prolongar a fascinação e encantamento deste encontro.

Porém é somente após a atriz começar uma série de encontros (com um garoto órfão, um aristocrata amargurado, uma freira, etc.) que fica claro que, mais do que em qualquer outro dos seus filmes, A Religiosa Portuguesa eleva esta busca pelo eterno a um valor ascético. Ao longo do filme a caminhada da atriz até poder finalmente entrar na capela e dialogar com a sua freira-duplo tem a marca que associamos a nomes como Ferrara e Rossellini. Quando Baldaque fica ali frente a frente com o seu duplo – num dos momentos mais belos do cinema recente –, não restam dúvidas de que não há diferença entre a religiosa que passa todas as noites na capela e a atriz promíscua. Elas estão ali unidas na mesma experiência, indistinguíveis para a câmera de Green, sempre duma frontalidade impressionante. A ascese é completada com uma boa ajuda de Lisboa e da música portuguesa e a grandeza de A Religiosa Portuguesa está justamente na maneira com que divide está experiência com expectador.

Eugène Green filma esta caminhada rumo à ascese com grande leveza. Seja sendo irônico com seu próprio filme ou abrindo espaço para diversas digressões bem humoradas. Ele também filma tudo com alguns dos close-ups mais generosos dos últimos tempos (Green sempre teve uma queda por closes dos seus atores encarando a câmera, usados aqui com muita força). O filme dentro do filme apresenta duas cenas que encapsulam toda a sua experiência: numa, a atriz desobedece ao seu diretor (interpretado pelo próprio Green, com o jocoso nome de Denis Verde), e lhe garante que na sala de montagem quando vir o plano perceberá porque ela o desobedeceu. Mais simples, um tanto antes, é uma troca de diálogos entre a atriz e sua maquiadora que, ao ouvir que o filme não é convencional, dispara impiedosa: “chato, então”. Ao que Baldaque retruca: “espero que não, a história me emociona”. Eugène Green sabe bem que, por todas as suas excentricidades, A Religiosa Portuguesa é uma experiência que nos move a cada novo plano.

Novembro de 2009

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