ensaios - especial resnais
Notas sobre um cineasta de esquerda
A política da/na obra de Resnais
por Cezar Migliorin

Em 1954, François Truffaut afirma em uma crítica que teremos que esperar que Alain Resnais comece a fazer longas-metragens para que possamos ver belos e bons filmes de esquerda. O embate com os filmes de esquerda da época parece ser, sobretudo, com um engajamento excessivamente discursivo. A denúncia e o texto no lugar da estética para enfrentar problemas de ordem política. Quando Truffaut chama Resnais para esse lugar, de cineasta de esquerda, As estátuas também morrem (1953), realizado com Chris Marker, continuava proibido na França por abordar o colonialismo a partir da opressão e mercantilização com que a  Europa trata a arte negra, uma metáfora para todo o colonialismo. O filme ficaria proibido durante oito anos na França. Neste curta, a relação entre política e estética é explicita e Resnais a trabalha como tema. O deslocamento que o homem branco faz dos objetos de arte africana para o Museu do Homem e para o mercado de arte e souvenirs se constitui, em si, em uma forma de destruição da cultura e do povo que produz aquela arte.

O engajamento de Resnais com as causas da esquerda da época é explicita e nos filmes seguintes a dimensão estética se torna especialmente política, às vezes acompanhada do tema, como é o caso de Hiroshima Mon Amour (1959), Muriel, ou O tempo de um retorno (1963) e A Guerra acabou (1966). Mas, neste filme e nos filmes em que o tema político ou de esquerda não está tão explicito, como pensar aquelas características centrais mais conhecidas do trabalho do cineasta com a política e mais especificamente com a esquerda como desejava Truffaut na crítica de 54? Como conectar a esquerda com a instabilidade da narrativa e do espectador diante das potências da memória, diante das potências ligadas à instabilidade do tempo não cronológico e da fragmentação da narrativa?

Ser de esquerda

Em uma série de entrevistas que Gilles Deleuze concede a Claire Parnet no vídeo Abcdaire (1988), o filósofo traz uma definição poética e singela para o que é ser de esquerda. Ser de esquerda ou de direita, primeiramente, é um problema de percepção. Ser de direita é como um endereço postal; parte-se de si, depois a rua, a cidade, o país, os outros países, cada vez mais longe. Se estamos em uma situação privilegiada de classe dentro de um país, o problema é pensar como fazer para que essa situação dure, como manter o privilégio do eu que aparece no alto do envelope; é o problema da direita. Ser de esquerda é: primeiro o mundo, o continente, o país, a cidade, a rua, e por último o eu.

Muriel traz a percepção de gauche que Resnais cria com os personagens. É evidente que não se trata de criar personagens de esquerda, revolucionários ou adequados a um certo discurso da época, mas, justamente, inventar uma impossibilidade de isolamento do eu – personagem, espectador – no presente e na geografia, desligado do nome do país que se encontra no final do endereço postal. Neste longa-metragem, o personagem Bernard traz da Argélia uma memória traumática. Através dele, Resnais conecta o passado de tortura do personagem e da França com seu cotidiano junto à madrasta Hélène e a namorada, Marie Do. Exatamente na metade do filme, Bernard apresenta as imagens que filmou na Argélia, imagens feitas em Super 8 nos mostram soldados fora de batalha; são cenas de espera, descanso, risos. Filmar aquilo tudo era uma forma de participação para Bernard. Ele não filmava a guerra, mas espantava o tédio e descansava, com a câmera. Em off descobrimos quem é Muriel. Bernard narra para um amigo, sobre as imagens em super 8 projetadas em seu atelier, uma seqüência de tortura em que se espera que Muriel fale.

Depois que Bernard vê, lembra e narra suas memórias, como que flutuando entre as imagens que ele mesmo filmou, ele retorna, no mesmo ateliê, agora com a namorada. Nesta breve seqüência, como muitas do filme, Bernard é visto pela namorada através de um caleidoscópio. Não é mais ele que utiliza um dispositivo ótico – do cinema para o caleidoscópio – mas a namorada, agora no universo privado. Depois de vermos Bernard fragmentado pelo caleidoscópio, voltamos a encontrá-lo no ateliê, agora com Hélène, a madrasta. Hélène entra sozinha no ateliê e liga o projetor em que havíamos visto as imagens feitas na Argélia. O calor da lâmpada queima o fotograma que está parado no projetor. Trata-se de uma imagem de um país árabe, a Argélia, ao que tudo indica. Bernard chega e começa uma conversa com a madrasta.

- Mostre-me alguma coisa, diz Hélène.
- Je n'ai pas envie de faire du cinéma (Eu não quero fazer cinema).

O cinema é o filme, que evoca o passado com o que Bernard diz acumular provas, mas é também a mentira, o exagero. A expressão, "faire du cinéma" funciona como “fazer teatro", em Português do Brasil.

- Você acumula provas contra quem?, pergunta Hélène.
- Você não entenderia, diz Bernard encostando-se à tela em que as imagens que o remeteram ao passado traumático, assim como a imagem queimada por Hélène, foram projetadas.

Essas seqüências em torno de Bernard compõem a estreita ligação entre a vida privada que não se descola do seu lugar histórico e da função do cinema, explicitada pela forma com que Bernard constrói sua memória, seu passado e seu país, ao mesmo tempo em que Hélène queima a película. O cinema aparece como gesto de acesso e apagamento do passado. Ele inventa a impossibilidade de isolamento do mundo. A memória e o cinema inviabilizam a primazia do eu e da rua em relação à África e o passado colonial da Europa.

Gauguin e a chave da memória

- É preciso pintar todos os dias.
É a lógica de Gauguin que Resnais destaca no início de seu curta-metragem de 1950 sobre o pintor francês. Mas era preciso ser mais exigente, diz o texto: "abandonar o lar, família, os hábitos".

-Em Paris serei cada vez menos compreendido, diz Gauguin.

Como sabemos, esse movimento de Gauguin o leva para a Taiti e para uma vida "selvagem". Resnais e Gauguin fazem uma ligação entre ser compreendido e estar no espaço em que o indivíduo encontra estabilidade. Livrar-se desse eu estável é também uma abertura para a possibilidade de não ser compreendido, de tornar-se obscuro. Para Gauguin, a ruptura com o universo burguês se soma a esse processo de se desfazer como homem que possui a unidade de um eu; no lar, na família. Não ser compreendido não é uma conseqüência de uma ação ou de uma fala, mas da impossibilidade de alcançar esse eu. Antes dele o caminho é longo; há o mundo, o Taiti, as mulheres, os corpos, a pintura. Não ser compreendido, no caso de Gauguin, é a potência que ele traz para a sua pintura. O deslocamento do seu nome próprio para o mundo, a pulverização desse eu aparece na forma do mistério de suas telas. Cada taitiana presente nas cores brutas do pintor é marcada pela presença do corpo, mas também pela distância e abismo do mistério e da entrega inconclusa. No contra-campo de Gauguin não há mais um homem ou uma mulher, mas uma multidão. Quando voltamos para o pintor ele já não é mais o mesmo.

Estamos no centro do problema da memória. A memória em Resnais aparece como o que acessa potências não individuais, não psicológicas. A memória coloca o indivíduo na instabilidade dos fluxos e do caos – a liberdade. Mas é também a memória que aprisiona e torna-se patologia, o ressentimento. Onde o homem aparece entre esses pólos – liberdade e aprisionamento. O homem aparece operando como um montador do que lhe acontece. Como organizador de um excesso que não deixa de ser excesso, posto que a memória não é só dele, mas de todo um país; memória-multidão. A memória é desmesurada, além e aquém do individuo. Esta é chave fundamental para entender Resnais, por mais que se tente remeter a memória de seus personagens às histórias pessoais e particulares. A memória é potência que se abre para um mundo de seres e histórias. O drama dos personagens aparece em suas possibilidades e capacidades de atuar na memória que lhes pertence e excede.

A ordem científica buscada pelos cientistas de Eu te amo, Eu te amo, (1968) por exemplo, se desmancha no excesso da vida do personagem. Mas o excesso não é caos. A montagem do filme, repetitiva e fragmentada consegue encontrar um espaço entre a ordem que nos permite entender Ridder, o personagem, e o caos que a memória acessa. A montagem é a própria dimensão humana que o realizador Resnais compartilha com o personagem. Uma vida é uma seqüência de recortes e conexões no caos dos fluxos; o sujeito e a criação. Para os cientistas de Eu te amo, Eu te amo, a memória é um pedaço delimitável de tempo e não um fluxo atravessado por outras memórias, forças, tempos e indivíduos.

Quero ir para casa

Mesmo em uma comédia, como Quero ir para Casa (1989) – movimento contrário de Gauguin – pai e filha tornam o encontro entre eles possível não no momento em que convergem nas opiniões ou no discurso, mas no momento em que o mundo não é um alimento para as ambições pessoais ou para os projetos de futuro idealizados. A filha, em Paris, deseja refazer-se no mundo, deixar de ser caipira, virar doutora. Sua saída de casa é em busca de uma identidade, algo bastante diverso do exemplo de Gauguin. Seu pai, medíocre cartunista americano, começa o filme com um deslocamento de Cleveland, nos Estados Unidos, para Paris. A concentração em si é total até o momento em que, impossibilitado de comunicar que quer voltar para casa, começa a se relacionar com sua fragilidade e acaba por ficar na França. Enquanto viviam em torno de identidades pessoais idealizadas, prometidas em um futuro qualquer, a comunicação entre eles e o presente era inviável. O mundo de promessas para o outro e para si se desmancha na impossibilidade de ser o mesmo eu que promete e que cumpre. A promessa é chronos, linear, demanda uma unidade entre aquele que promete e aquele que cumpre a promessa. O homem que promete algo para si e para o outro deve dar a sua palavra no tempo, ser mestre de si e de seu futuro. Daí toda a dificuldade.

A memória sempre foi para Resnais uma das maneiras de multiplicar os sujeitos da enunciação, o que explicita o interesse que Deleuze teve pelo cineasta. "Desde o princípio, até Morrer de amor (1984), (...) Resnais só tem um único tema, corpo ou ator cinematográfico, o homem que ressurge de dentre os mortos", diz Deleuze em célebre carta a Serge Daney. Mas que homem é esse que surge dos mortos? Na imanência deleuziana, o lugar dos mortos não é outro lugar, separado deste dos vivos. Os mortos estão fisicamente ausentes, mas não cessam de fazer parte dos homens do presente, nas repetições e diferenças. Surgir dos mortos como quem aparece para continuar criando, atualizando o que foi, os possíveis não ordenados no tempo. Surgir dos mortos sem abandonar o lugar dos mortos. Ridder está sempre morrendo e sempre voltando dos mortos.

Este caminho que alguns filmes de Resnais fazem, do eu para o mundo, da unidade para a multiplicidade, da morte para a vida, não é um caminho sem risco e este risco é parte fundamental da relação do filme com o espectador. Instabilidade fundamental construída com complexos jogos de escritura, entre idas e vindas entre sonhos, tempos, realidades, que está sempre demandando o espectador. É nesta incompletude que o espectador se coloca, em meio a um mundo fragmentado em que ele é convidado a refazer linhas narrativas que nunca se desdobram em uma representação da memória ou do passado.

A guerra acabou

Em A Guerra Acabou, o trabalho e o cotidiano habitam uma realidade opaca, que deve sempre recomeçar, destruindo o que Roberto, amigo de Domingo/Carlos/Francisco/Rafael/Diego (os diversos nomes de Yves Montand) detesta, essa “realidade demasiadamente real que não se acumula” nem se adequa aos sonhos e ao próprio trabalho. Diego, em sua vida de clandestino, produz a flutuação identitária que tanto interessa Resnais. Não se trata apenas de alguém que assume outra identidade, mas de alguém que vive entre várias, confundindo-as. A seqüência em que encontra Nana é emblemática. Sua amante e filha. Espantosamente Resnais consegue filmar as duas relações que a personagem tem com Diego/Domingo.

Explicitamente político, o filme coloca Diego nesse ir e vir entre a casa e o mundo. Mas, suas opções não são apenas dicotômicas, não se trata de um individuo aqui ou lá, mas do mesmo Diego, falando na segunda pessoa, aqui e lá. Entre o detalhe e um eu que se distancia para falar de si: - Você atravessou a fronteira. Resnais não cessa de refazer o problema deleuziano; ser de esquerda é um problema de percepção. O militante em crise não coloca problema sobre sua crença na revolução ou na greve geral que é preparada, mas em relação ao seu lugar, em relação ao futuro da revolução. A crise de Diego é como o que se estabelece como centro, o partido, por exemplo, impossibilitando, assim como a identidade, a multiplicidade. Qual o lugar de Diego? O que faz sua memória e sonhos? Acesa o real de cada identidade, com uma mulher, um companheiro do partido, um medo. Cada identidade falsa é sempre real.

A revolução, para Resnais, não se diferencia muito do sonho e da memória. Nos dois casos trata-se de uma potência que atua no presente. Na fórmula deleuziana: que as revoluções acabam mal, isso todo mundo sabe; o que interessa é o devir revolucionário e esse devir independe de uma promessa ou de um tempo cronológico.

Velocidades

“A loucura é como a inteligência, ela chega e ela sai. Quando sai não se pode explicar.” Nevers, em Hiroshima mon amour

Sobre Hiroshima mon amour, Resnais diz em entrevista a Aldo Tassone: "Eu falava com a Marguerite Duras que seria interessante fazer um filme em duas velocidades". É possível entendermos essas duas velocidades de que fala Resnais, não como rápido e lento ou duas velocidades paralelas, mas entre velocidades mensuráveis e não-mensuráveis, estas seriam as duas velocidades. Enquanto as velocidades mensuráveis criam uma relação com o espectador em que podemos perceber a rapidez e a lentidão, ou seja, uma relação em que espaço e tempo encontram uma medida comum, nas velocidades não-mensuráveis é justamente essa relação que se esvai.

Ora, a memória é um desses operadores que possibilitam o surgimento de imagens, gestos, ações, sujeitos de não se sabe onde, nem por que. Se podemos falar de duas velocidades, como faz Resnais, é justamente essas duas formas de aparição que existem nos filmes do francês. Eu te Amo, Eu te Amo transita justamente entre essas velocidades – a dos cientistas, mensuráveis e da /memória/sonho/imaginação do personagem que volta no tempo. É também em velocidade sem medida que a Argélia invade a vida de Hélène e Bernard em Muriel. A co-existência dessas duas velocidades garante um choque entre o que se solidifica e uma potência ainda não formulada, ainda livre de coordenadas espaciais e temporais.

Só essa desmesura explica a chegada da música em Amores Parisienses. Com a música, o personagem não cabe em si. O corpo não suporta mais um mundo que o atravessa. O corpo não é mais um invólucro de uma identidade, mas uma intensidade de conexões. Em Amores Parisienses não é o personagem que canta, mas o mundo que vem rachar o personagem, a intimidade, a identidade, o nome próprio, com a alegria de um musical. As duas velocidades existem aqui entre o individual que canta, velocidade mensurável, pé no chão, e o mundo que canta pelo personagem. Todos cantam, todos flutuam; velocidades infinitas. Neste filme, cada personagem que começa a cantar nos afeta, antes de tudo, pelo surgimento de um tom vindo de lugar nenhum, uma voz que não pertence mais a ninguém e que compõe a cena, um texto que não pertence mais a nenhum daqueles personagens, unicamente. Nesses casos – e também em Muriel, por que não? – é pela música que múltiplos seres vêm a falar e cantar pela boca das personagens. Impossibilidade de isolamento. Eis o procedimento: escrever o tempo com velocidades infinitas para que possamos ser afetados pelo devir africano, negro, argelino, árabe, judeu, revolucionário.

Setembro de 2008

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