ensaios - especial resnais
O moderno e o contemporâneo
O homem, o objeto e a paisagem entre Resnais e Weerasethakul
por Julio Bezerra

Mesmo hoje, quase cinqüenta anos depois, os experimentos dos primeiros filmes de Alain Resnais ainda impressionam. Hiroshima meu amor (1959), O ano passado em Marienbad (1960) e Muriel (1963) talvez não tenham mais a urgência nem o impacto do insólito, talvez suas estratégias até soem datadas. Mas voltar a elas é sentir sempre a mesma excitação, a mesma emoção de redescobrir todo um mundo. E nessa velha/nova aventura oferecida por essa mostra, o que me saltou aos olhos foi o modo como, no cinema de Resnais, os objetos funcionam como uma espécie de elo com a realidade. As imagens como presenças físicas. Fatias do pensamento em seu eterno devir, existem enquanto estão sendo vistas, como ‘coisa em si’. Fora disso, caem no vazio, na ausência, ou, como diz o próprio filme, “no silêncio de mármore”.

André S. Labarthe costumava dizer que se Marienbad existe, “é à maneira de um objeto: como as manchas de Rorschach”. Difícil negar. Resnais fraciona e apreende o real através de uma série de movimentos de aparelhos, de travellings. Passeamos por corredores, salões, galerias, quadros emoldurados, mármores, espelhos, colunas, estátuas, portas... Somos então convidados a viver esses fragmentos em seus tempos, no tempo de vivências desses espaços percorridos. O plano é absoluto. A representação do amor é reveladora dessa estética. Seja nas ruas em Hiroshima, seja pelos corredores em Mairenbad, o encontro amoroso parte sempre do abstrato. O amor se desenrola por entre camadas formais. Não são os protagonistas, seus olhares, movimentos, e gestos, que nos transmitem a idéia de amor. Resnais objetaliza tudo. Ainda que facilmente discerníveis um do outro, homem e objeto parecem nivelados. Por vezes, a estátua em Marienbad parece ter mais valor que o casal, enquanto o jogo de fósforos se iguala ao jogo do amor.

A própria trama de Marienbad precisa dos objetos para progredir: um copo quebrado dá carta branca à memória e desencadeia o fio narrativo do filme. Logo de cara, o longa parece se distanciar da tensão do homem e do mundo, anulando o personagem, anulando o homem, anulando o presente, o passado e o futuro. Um terreno onde tudo é permitido. Resnais espalha imaginação para todos os lados, liberando-a de certos mecanismos e hierarquias tradicionais. O que se vê neste filme sem antecedentes formais é a busca por uma nova descrição. O projeto literário do nouveau roman de Robbet-Grillet e Marguerite Duras também se baseava em uma nova exposição que pudesse desencadear também uma outra subjetividade. Abaixo a idéia de que o homem só poderia ter do mundo um conhecimento subjetivo! Não mais o homem como justificativa de tudo! Tratava-se então de ir contra um mecanismo condicionado que nos faz identificar sujeito e objeto, homem e natureza. Assim, Resnais parece descrever as coisas de fora, diante delas. A paisagem e os objetos parecem dados, de saída, como não sendo o homem. Como o nouveau roman, estes primeiros filmes de Resnais parecem traçar os limites entre as coisas, negar todo antropomorfismo para apreender o real, para fazê-lo surgir em sua opacidade.

Pois de repente, em meio aos mistérios de Marienbad, Mal dos trópicos (2004), de Apichatpong Weerasethakul, me veio à cabeça e não saiu mais. Ver um filme de Weerasethakul é sofrer os efeitos de uma força centrípeta semelhante. Seu cinema está muito próximo da proposta de Resnais quando desierarquiza passado, futuro e presente, quando recusa o antropomorfismo e uma concepção humanista da natureza. Se existem enredos em Mal dos trópicos e Marienbad, eles se resumem à tensão da espera de um acontecimento sempre iminente. São cinemas que se inscrevem como presença bruta e assumem formas diferentes (entre si inclusive) de fugir do registro da representação para alcançar algum outro tipo de realidade.

Mas, ao mesmo tempo, estão também muito distantes. Resnais e Weerasethakul desfilam sensibilidades diferentes em relação aos valores do mundo e do cinema. Embora os filmes do cineasta tailandês sejam experiências conceituais muito rigorosas, suas imagens parecem sempre impregnadas de um sentido quase religioso de revelação. Mal dos trópicos narra um estado de coisas à flor da pele e chama o espectador para mais perto. Weerasethakul parece nos exigir uma espécie de virgindade cinematográfica. Não parece mais necessário refletir sobre a linguagem para refletir sobre o mundo. A imagem é então uma mediadora privilegiada, e o espectador caminha junto com a obra. Mas mais do que isso: o cinema de Weerasethakul se acha intimamente ligado a uma mudança de olhar lançado ao corpo. A pulsão maior deste cinema é o encantamento físico do corpo, que assume uma função híbrida, torna-se um campo de passagens, uma estrutura fluida, por onde todos os elementos ativam intercâmbios.

O mundo descrito em filmes como Mal dos Trópicos e Eternamente Sua (2002) é, antes de mais nada, um mundo físico, em seu movimento microscópico e permanente, que se confunde, se identifica com o aspecto sensorial dos personagens, corpos que interagem com a paisagem e com os corpos da natureza. A partir do momento em que tudo é físico, a descrição do plano geral já é o detalhe intimista. Ver um longa de Weerasethakul é se tornar parte de uma geografia movediça, que se dissolve na descrição de um mundo absolutamente físico, onde todas as coisas se identificam entre si. E assim, o cineasta parece se recusar a fazer qualquer distinção entre sujeito e objeto. Weerasethakul parece filmar o mundo num momento que antecede a separação e a organização diferencial de seus objetos. Ele não identifica o “ser” com um dos seres (Deus, o homem ou a Natureza), rejeita um modo de pensar baseado nesta clivagem entre Deus, o homem, e as criaturas.

Um filme como Mal dos Trópicos não tem como objetivo e efeito espalhar o homem por toda parte, nem mostrar as distâncias entre sujeito e objeto, mas justamente confundi-los, tratando tudo indiscriminadamente. Olhares, personagens, encontros amorosos, e o suor escorrendo pelo corpo são descritos no mesmo nível, na mesma hierarquia narrativa. Uma narrativa física que ressalta a unidade de todas as coisas, uma espécie de cosmos. Não é mais a natureza ou os objetos que se humanizam, mas o próprio homem que perde a sua humanidade. O homem como parte de algo muito maior que a humanidade.

Setembro de 2008

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