eletrônica
Instantâneos sobre Retrato Celular
por Cezar Migliorin e Ilana Feldman

O programa Retrato Celular, produzido pela Conspiração Filmes, dirigido por Andrucha Waddington e exibido pelo Multishow, nasce encantado com o dispositivo – pessoas ordinárias, exclusivamente jovens, se filmam com um celular. No primeiro programa só se fala dele. Esquecem que isso já é parte da vida. Imagens amadoras as pessoas já fazem e consomem, nas pegadinhas, nas festas de aniversário, na pornografia, no jornalismo, na internet, etc. O dispositivo não precisa ser explicado dez vezes.

O programa inovador nasce velho.

As imagens do celular são utilizadas como cobertura para os textos feitos em entrevistas, como se os anônimos estivessem em um confessionário do BBB. A própria seleção dos anônimos, aliás, obedece aos critérios etários, econômicos e demarcadamente identitários que costumam pautar os realities: a patricinha loura consumista, o playboy malhador de Copacabana, o nerd empreendedor na internet, a advogada oriental trabalhadora e paulista, a estilista lésbica, o vitrinista gay, o grafiteiro, o sambista, a cantora de rap, a “vida” em uma república, o pegador de mulher.

O celular, a experiência da câmera junto ao corpo, o gesto que a princípio tomaria para si o olhar do outro, a escritura que isso pode trazer, o tempo e o tédio – esse fiel companheiro –, tudo isso é eliminado.

A ditadura do roteiro.

“Hoje em dia os roteiros não se contentam mais em organizar o cinema de ficção, os filmes de televisão, os jogos de vídeo, as agências matrimoniais, os simuladores de vôo. A ambicão deles ultrapasssa o domínio das produções do imaginário, para colocar em sua responsabilidade as linhas de ordem que enquadram aquilo que se deve nomear precisamente 'nossas' realidades...” (Jean-Louis Comolli, em Sob o risco do real).

O plano mais longo não dura mais do que alguns poucos segundos. O espetáculo é ávido e impaciente. Ele não tem tempo, não escuta e não espera. Ele é pura estratégia de intensificação e adesão. Uma exceção: o plano do rosto de uma criança e a mudança de sua expressão. Corta. O pai retoma a cena e fala para a câmera algum clichê qualquer sobre amar os filhos. A palmada e o grito ficam de fora.

O roteiro, hiperpresente, organiza o material por temas – apresentação dos personagens, imagens de cobertura, início de um dia, final de um outro – mas não consegue nenhuma narrativa, nenhuma efetiva construção de personagem. Porque a experiência, roteirizada e complusivamente editada, é tristemente esvaziada.

A edição, com uma espécie de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção), esvazia o que esse tipo de relação entre câmera e sujeito pode ter de interessante. Esvazia a produção de uma imagem que nasça dessa tensão entre vida e relato, entre narrador e personagem, entre intimidade e visibilidade.

O som direto captado pela câmera do celular é raro. Como incorporar o descontrole se tudo que vemos e ouvimos é puro controle? Apenas como gags, sacadas rápidas e curiosas, como quando a garota fala: “Acabou! Acabou ponto com ponto br”. Ou, “Acabei a faculdade e deixei de ser o futuro do país para me tornar um problema social”. A vida, enquanto espessura, enquanto duração, passa longe e se torna um arremedo de insights, de falas descritivas e auto-explicativas; eu isso, eu aquilo.

É uma ingenuidade acreditar que entrar no jogo da “primeira pessoa” é escapar dos ilusionismos da ficção assumida como tal. É uma ingenuidade associar a perscrutação da intimidade a um método capaz de revelar uma recôndita e essencial autenticidade. A intimidade deixa de existir. Ela se torna um efeito. Efeito de intimidade, efeito de autenticidade, efeito de verdade. Por isso, não há invasão de privacidade. Há, tão-somente, evasão.

Depois do intervalo comercial se explica o dispositivo novamente. Aliás, não há propriamente “intervalo” comercial. A publicidade dos celulares-câmera é a razão de ser da dramaturgia. Aqui, a publicidade encontra o dispositivo. Mas Retrato celular não vende apenas celulares que filmam. Vende perfis, identidades já-prontas, temporalidades sem tempo. Vende a redução da subjetividade a um conjunto de comportamentos determinados.

Saudades do Brasil Legal e, até, do Big Brother Brasil. Qualquer coisa que tenha o mínimo respeito pelos ritmos alheios. Se se deseja uma imagem do outro, existem coisas a serem compartilhadas: o ritmo, as conexões, o tempo, as inúteis paisagens. É preciso tomá-las para si, acompanhá-las, e não apenas observá-las como um olho inerte, clínico e morto.

Filmar a própria vida é uma questão de escritura e não de intimidade. Filmar a própria vida é se subjetivar, produzir um sujeito, e não se sujeitar a um dispositivo, e não se sujeitar ao olhar do outro. Editar a vida do outro é entrar em meio a processos de subjetivação alheios, é afirmar o sujeito como crise e não como um produto acabado de seu mundo pronto.

Retrato Celular é paradigmático da tentativa – nem sempre fracassada – de o espetáculo se apropriar das vidas dispersas e ordinárias, das potências do banal. Mas para tal é preciso perceber que é justamente no banal que reside a força - e não na ordem que o antecede.

“Filmar homens reais no mundo real representa estar tomado pela desordem dos modos de vida, pelo indizível das vicissitudes do mundo, aquilo que do real se obstina a enganar as previsões. Impossibilidade do roteiro. Necessidade do documentário”. (Jean-Louis Comolli, em Sob o risco do real - Tradução: Paulo Maia e Ruben Caixeta)

Setembro de 2007

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