Rio Congelado (Frozen River),
de Courtney Hunt (EUA, 2008)
por Rodrigo de Oliveira

Patinando num programa

Rio Congelado é um daqueles dramas sociais em que a defesa dos meios que justificam um fim digno, humanista, só sobrevive sem aparentar toda sua miopia miserabilista porque, no fundo, há tanta fé na justeza de sua mensagem e no invólucro realista que se arma em torno das situações que nada do que se passa em seu interior é exatamente percebido e trabalhado – um projeto de cinema, claro, mas que é tão integralmente assumido que perde mesmo sua cara de projeto, de programa, e surge assim, quase por geração espontânea e um tanto inconseqüente. Os equívocos incríveis, mas também os poucos momentos de respiro e até de interesse, acabam se perdendo sob o rolo compressor do registro independente-caseiro, das metáforas tão óbvias que nunca se apresentam como tal (um rio congelado, terra nada firme, sempre a um ponto de ruir, “assim como a vida destes personagens”), de uma série de chaves de compreensão que dizem tão pouco sobre aquelas pessoas cuja vida se pretende esquadrinhar e tanto mais sobre aqueles que fabricam essa exposição.

Ray Eddie é o símbolo do white trash americano: abandonada pelo marido viciado em jogo, servindo pipoca e Tang para os dois filhos no jantar, sem dinheiro para sair do trailer minúsculo em que mora e comprar a nova casa pré-moldada que encomendou, com uma televisão prestes a ser tomada pela loja por falta de pagamento, humilhada no subemprego. Mais que isso, é do tipo que foi sendo endurecida pelo tempo e pelo acúmulo das dificuldades – e é atrás disso, desse direito adquirido de expor cada marca de um personagem-súmula que existe exatamente para esse fim, que Courtney Hunt vai quando filma Melissa Leo na situação clássica da mulher-coragem em momento de fraqueza patente, seminua, trocando de roupa ou se preparando para o trabalho, a pele enrugada menos pela velhice que pelo mau-trato, as tatuagens de um colorido estanho e sem-lugar em sua vida cinza, tatuagens que parecem ter sido feitas na cadeia e que estão sempre ali a lembrar de um passado terrível porque eterno presente. Mas esta é uma personagem que condiciona e é condicionada pelo mundo que a cerca, um mundo em descrédito e franca decadência moral, onde ninguém vale nada, todos desconfiam de todos, versão polar da selva humana em que estamos metidos (eles e nós, uma vez que o apelo à identificação não só com os dramas, mas com os métodos de Ray Eddie são fundamentais para que o projeto surta o efeito esperado). Aproveitar-se da fragilidade de uma índia americana contrabandista, atravessar imigrantes ilegais na fronteira, tudo bem contanto que tenhamos sempre os fins ali no horizonte – e é claro que, no meio da primeira explosão de violência de Ray, arma em punho ameaçando a índia Lila, haverá uma ligação do filhinho de cinco anos a nos lembrar que está mulher é todo coração.

Mas aquilo com o qual Rio Congelado é atravessado eventualmente, e que nunca tem pulso para se confrontar, é a possibilidade de que já não sobre muito nesta mulher para se relacionar a não ser um punhado de ações e muito pouco do espírito machucado que Courtney Hunt e sua encenação condescendente querem nos fazer acreditar. A sobrevivência e uma vida melhor para os filhos a que genuinamente ama são fatos, estes são objetivos reais da experiência dessa mulher, mas em vários momentos Rio Congelado nos mostra que é bem capaz que Ray esteja simplesmente imune a todo o resto. É mais que um personagem desagradável: ela de fato não se deixa arranhar por nada que o filme tão sistematicamente impõe na pauta sociológica de seus dias (chega-se ao cúmulo da xenofobia criminosa, que não só deprecia um casal paquistanês como também põe em risco a vida de um bebê, abandonado à morte no meio do gelo sem meios-termos e arrependimentos). Nem o espelhamento dramático forçado em Lila, espécie de gêmeo menos mau, também mãe solteira e paupérrima, indian trash, parece contaminar verdadeiramente o ritmo inabalável com que Ray encara os problemas que se colocam entre ela e os planos para os filhos. Assim, o final redentor – existe um carrossel improvisado, crianças felizes e sorrisos a simbolizá-lo, acreditem – antes de apenas bobo ou fácil demais, é francamente desonesto. Se exigiu que essa mulher se despisse de tantas maneiras diante da câmera que, no momento em que ela de fato apresenta suas cicatrizes sem nenhum pudor, não resta a Rio Congelado muito mais a fazer que não esconder suas próprias vergonhas.

Fevereiro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta