Rio Sonata (idem), de Georges Gachot (Suíça/França, 2010)
por Paulo Santos Lima

Imagem desafinada, áudio calibrado

Talvez postural demais, essa escolha pelo extraordinário que rege a pauta de boa parte dos documentários brasileiros recentes é inevitável em personalidades musicais. Isso, que inclusive está fundado na cinematografia de ficção, não é uma tradição desses lados: são das terras austrais, por exemplo, Piaf, Ray, Control. O problema maior, para a imagem, sobretudo, é a chapa branca. Nisso, o Brasil vem subindo ao pódio há anos – um exemplo é Zuzu Angel. É a partir desse quadro que Rio Sonata torna-se uma obra indesviável: documentário bastante problemático, mas, surpreendentemente, não falhando propriamente nestes quesitos. Seu enguiço está na realização – um defeito, digamos, mais cinematográfico, de instalação do personagem num determinado espaço ou interrelacionar elementos numa narrativa figurativa. Em síntese, erro de escolha para o que olhar e como agregar os olhares no filme.

Na prática, o diretor Georges Gachot, um suíço que se encantou com alguns dos nossos ilustres músicos da MPB, de Maria Bethânia a Gilberto Gil, escolhe embasbacado falar de Nana Caymmi. Nada mal, a cantora é de voz única, emocionante, além de ser mais outra artista brasileira cujo talento sideral teria de ser melhor lembrado pela sonografia nacional. Gachot, evidentemente, não vai metralhar a simpática Nana; isso seria quase um desvio estético no filme. Mas ele procura agregar um “valor” a Nana, aquele já bastante sedimentado e clichezado quando se fala de artistas e tal – a relação entre arte e mundo. Ao gosto de Gachot, o mundo bem pode ser o Rio de Janeiro, que é terra pátria da cantora e, fortunadamente uma facilidade para qualquer fotógrafo esforçado capturar um plano bonito com seu equipamento. O encantamento com as praias, águas, geografias e massa humana cariocas bifurca Rio Sonata. Sobre o que fala este longa? Ou, melhor colocando, o que observa esse filme: Nana Caymmi ou o Rio de Janeiro? Na relação atrapalhada que Gachot elabora, dá impressão do foco ser no estado de espírito carioca, o estar no Rio de Janeiro em experiência conduzida pela maré da voz de Nana Caymmi.

E é. Vemos imagens estetizadas de populares jogando bola na praia, tomando sol na pedra, outros passeando pelo calçadão. Avistamos, também, o céu nublado, as ondas atiçadas pela tormenta, a baía da Guanabara delineada a traço divino. Ouvimos Nana falar sobre o amor, sobre sua família, seus amigos, suas manias. Sabemos um tanto mais dela, também, por bocas outras: as de Gil, Milton Nascimento, Erasmo, Maria Bethânia e tal. Mas Nana, até pela série de depoimentos que a mesma dá ao longo da projeção, parece negar isso, involuntariamente. Porque o belo em Nana, cantora de força, filha de outro forte, Dorival Caymmi, é justamente cantar sem um fim maior do que lançar à frente o que melhor ela faz, aos afortunados que puderem ouvi-la. “Eu me amo cantando”, ela diz. Nana tem bastante consciência da câmera, fica claro no filme, mas não é uma artista que precisa se expressar através do palco. A voz no microfone lhe basta. Não precisa direcionar o som saído de suas cordas vocais para responder a algo determinado.

O específico, aliás, é uma questão apenas para Gachot. O Rio de Janeiro, no caso – como bem denunciam o título do filme e o seu primeiro plano, mostrando uma aérea de forte impacto do local. O concreto, expresso pela costura de imagens, do plano da evidência, é o Rio de Janeiro e a cantora Nana Caymmi correspondendo-se através da narrativa cinematográfica; montagem mais propriamente. Impressões, a partir deste concreto aparente, surgem hemorrágicas. A experiência resulta estranha. Gachot não deveria ter nomeado o Rio, ou deveria despersonalizar as belíssimas canções capturando diversas vozes. Melhor seria mesmo tirar o CEP, pois a voz de Nana consegue criar, em certos instantes, momentos sobrenaturais, como nas ondas raivosas do mar ao som de Sem Poupar Coração ou pai e filha cantando Acalanto em imagens de massas arbóreas. O som justifica a imagem, dá-lhe um contexto. A dispersão pela escolha do belo, entre imagens fotografadas demais, temas nobres demais, artista de valor indispensável demais, falas sábias demais, compromete um bocado este Rio Sonata. Mas, por motivo ébrio, do som que visita os ouvidos amolecendo a visão, o filme de Georges Gachot não merece o fio da guilhotina. Para um estrangeiro, inclusive, ele fez mais do que nossos cineastas. Nana não é qualquer coisa. O Rio idem.

Outubro de 2010

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