eletrônica - especial retrospectiva
2006 Sob o risco de Joana por
Ilana Feldman Joana
Mocarzel, a personagem Clara de Páginas da Vida, foi a grande surpresa
de 2006 no âmbito da teledramaturgia. Portadora de síndrome de Down, a menina
de seis anos soube transformar sua situação especial em uma condição de permanente
esquiva, indeterminação e desestabilização da dramaturgia televisiva. Como uma
atriz selvagem, indomesticável e liberta de pressões e compromissos imputados
aos atores profissionais, Joana tem estremecido seu núcleo dramático, seja através
do improviso nos diálogos, de frases ditas aos supetões, ou de brincadeiras de
repetição das falas dos atores. A própria dicção de Joana, por vezes incompreensível,
funciona como mais um elemento de estremecimento da dramaturgia. Pois quando Joana
se manifesta, os atores ao seu redor parecem muitas vezes se sentir em uma espécie
de disputa: disputa por quem vai traduzi-la, por quem vai interagir com ela e,
assim, por quem vai criar ganchos que garantam as continuidades.
Astutamente,
Joana não faz sua participação passar despercebida, recusando ser objetificada
pela estrutura de produção da telenovela e por sua, a princípio, condição de personagem
coadjuvante. Quando aparece, sua estratégia enquanto insubordinada é colocar seus
pares em situações de subordinação. Todos ficam em função de sua performance,
aguardando – não sem alguma apreensão – seu texto, suas deixas e atitudes inesperadas.
Em diversos momentos, Joana repetia tudo o que dizia a personagem de Regina Duarte,
como se estivesse parodiando o próprio ato da interpretação, baseado em exaustivas
repetições de cenas. Não
são raros, aliás, os constrangimentos e mal-estares de Regina Duarte, que interpreta
a mãe da personagem Clara/Joana. É também justamente por causa dessas arestas
e vacúolos na interpretação de Regina, de onde escapa incontroladamente sua subjetividade,
que a novela apresentou algum interesse. Claro que aqui não vem ao caso a excelente
interpretação de Lilia Cabral e a relação do casal Lilia e Marcos Caruso. Antes,
o que interessa é como Joana Mocarzel, com toda tranqüilidade, subordina Regina
Duarte a seus caprichos, entendidos como improvisos e criação de espontaneidades. Mas,
afinal, por que autor e diretor da novela teriam interesse nisso? E por que a
dinâmica da câmera, além de não cortar, espera e incentiva esse tipo de interação
e situação? E por que, por fim, a edição opta pela exibição? Parece-nos
que esses vários níveis de escolhas estéticas e dramatúrgicas estão empenhados
na construção de um “efeito de real” que legitime a proposta, supostamente “realista”,
pleiteada por Manuel Carlos em diversas entrevistas. Segundo Roland Barthes, o
“efeito de real” era obtido no romance realista por elementos que, sem aparente
função na narrativa, conferiam verossimilhança e credibilidade à ambientação e
caracterização dos personagens, instaurando uma espécie de transparência entre
o leitor e o texto – ou, hoje, entre o espectador e a imagem. Porém,
se a atuação de Joana Mocarzel produz um “efeito de real”, fazendo a linguagem
desaparecer como construção para surgir confundida com as coisas – quando é o
próprio “real” que parece nos falar -, por outro lado, esse mesmo efeito de transparência
entre o espectador e a imagem é conquistado, paradoxalmente, por meio da própria
desestabilização da dramaturgia. Isto porque hoje - depois de toda a herança moderna
- só poderia haver relação de transparência e engajamento na fruição a partir
do risco dessa mesma transparência e fruição se romper. O que significa que, quanto
mais se leva as construções cênicas ao limite de uma reflexividade, mais tomamos
esse risco como prova de autenticidade, ou como “efeito de real”, e não como uma
estratégia antiilusionista que nos distanciaria da representação. Se
outrora certos procedimentos estéticos teriam como intuito produzir algum tipo
de distanciamento crítico, hoje, no âmbito do audiovisual, usam-se justamente
os mesmos procedimentos (como a presença da câmera, da equipe, ou rastros da construção
cênica) como carimbo de verdade e autenticidade, o qual assegura justamente o
engajamento espectatorial na trama. Práticas amplamente utilizadas, não sem diferentes
intenções, dos documentários de Eduardo Coutinho à presença de Joana em Páginas
da Vida. No entanto, é evidente que as disrupções provocadas
por Joana são sutis e que as estratégias da novela não visam desestabilizar a
posição assegurada do espectador, nem operar sobre ele qualquer efeito que possa
realmente ameaçar a representação. O que se dá a ver, portanto, é o risco que
habita o limite. Risco que se impõe quando o olhar de Joana, insubordinadamente,
mira o extracampo. editoria@revistacinetica.com.br
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