ensaios
Sob o risco da ficção
por Ilana Feldman

Um.

Em 1966, o filósofo praguense radicado no Brasil, Vilém Flusser, publicou no Diário de Ribeirão Preto um sucinto e saboroso artigo, onde discorria sobre “a sensação do fictício de tudo que nos cerca e do fingir como clima de nossa vida”. Em Da ficção, ele alegava que em todo o transcurso do pensamento houve pensadores e períodos históricos que vivenciaram o mundo como ficção enganadora, tendo a realidade como garantia. No entanto, para tantos outros que romperam os pares de oposição, as dicotomias classificatórias entre real e ficção, verdade e ilusão, dentre os quais se inclui o próprio Flusser, como “Wittgenstein, Einstein, Kafka, Beckett, Hitler, os Beatles e os jovens da Rua Augusta” (!), “nãotermo de comparação para a ficção que nos cerca, pois a ficção é a única realidade”.

Flusser sabia, intimamente, que é a própria linguagem, pura forma, puro significante - e, nesse sentido, ficcionalizante - o que organiza nossa realidade, conferindo-lhe sentidos e efeitos-de-verdade. Faltou, assim, à listinha de Flusser incluir, além de Nietzsche e Fernando Pessoa, os criadores de linguagens que articulam sons e imagens, fazendo da relação de complementaridade (e não de oposição) entre real e ficção a matéria prima do audiovisual. O que não significa, de saída, que todas essas linguagens sejam equivalentes: a diversidade dos efeitos é proporcional à variedade dos métodos e artifícios empregados, como se pode ver nos trabalhos de Robert Flaherty, Jean Rouch, Luchino Visconti, Abbas Kiarostami, dos editores do Big Brother Brasil, do show-man Michael Moore, do cineasta-biólogo Luc Jacquet (de A Marcha dos Pingüins) e da dupla Byambasuren Davaa e Luigi Falorni (de Camelos Também Choram).

Dois.

Em 2001, Jean-Louis Comolli teve um artigo seu publicado em um catálogo do 5º. Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. Em Sob o Risco do Real, um dos mais belos programas em favor de um documentário não-programático e em tensão com o real, Comolli defende que frente à crescente roteirização das relações sociais, intersubjetivas e do audiovisual como um todo (o que estaria tornando os roteiros de ficção cada vez mais fóbicos, por temerem o risco e tudo aquilo que provoca fissuras), o documentário deve rejeitar a programação excessiva, a vontade de totalização. Pois a imposição do roteiro evita a fricção com o real e com aquilo que lhe escapa, evita o confronto e tudo o que estaria fora do cálculo, propondo-nos uma versão do mundo acabada.

Porém, se Comolli postula o que pode e deve um certo tipo de documentário (o mais potente aos seus olhos), esquece, estrategicamente, de citar os documentários programáticos e programados, que, assim como grande parte da ficção audiovisual, também se encaixariam na categoria de “fóbicosem relação ao real. Evitando as fissuras, muitos documentários hoje, especialmente os que almejam ampla visibilidade inserindo-se em grandes esquemas de produção (ou distribuição), saem a “campocom seus sentidos previamente organizados, quando não os organizam esquematicamente na montagem, jogando no lixo justamente o residual.  No entanto, nem todo filme excessivamente programado é necessariamente fóbico e deve ser deslegitimado de antemão, como, por exemplo, A Marcha dos Pingüins (França, 2005) e Camelos Também Choram (Alemanha/Mongólia, 2003), que poderiam ser alvos da crítica de Commoli. Cada obra é autônoma e não deve ser encaixada em categorias fechadas, igualmente roteirizadas.

Três.

No final de século XIX, Nietzsche havia feito a crítica de nossa gramática, que é apoiada em um modelo de identidade, verdade e unidade. Pensar o movimento, as zonas de tensão e fricção, sempre foi desafiante, porque as palavras, tão precárias, insistem em nos trair com seus significados rígidos. Tal é o caso da antiga querela entre documentário e ficção... Mas, ao fim e ao cabo, qualquer realizador sabe que ambas as “categorias” partem de procedimentos ficcionais semelhantes para construir efeitos-de-verdade distintos, ou com distintos estatutos. É na montagem e na edição de som que ficção e documentário se encontram de modo explícito e onde os sentidos serão organizados a partir de critérios dramáticos.

Nunca é demais ressaltar que todo discurso, entendido como uma prática, parte da manipulação de procedimentos ficcionais para dar sentido à experiência, construir efeitos-de-crença. Toda narrativa é entretecida por uma costura ficcional que torna a vida possível, organizando o que somos e sendo indissociável do que chamamos de realidade. o real, em si mesmo, seria uma quimera, na medida em que é inapreensível, não-capturável, selvagem, aquém e além da representação.

Alguns filmes vendidos como documentários, uns mais programados e outros, aparentemente, mais frouxos, trabalham na explicitação dos procedimentos ficcionais na organização e construção da realidade. Fazem da radicalização dos artifícios dramáticos (montagem narrativa, enquadramentos elaborados, trilha sonora, planos subjetivos, por vezes efeitos-especiais) uma forma de chamar atenção para o próprio método de construção da narrativa, sem romper, no entanto, com o ilusionismo. Função pedagógica, portanto, mas não de relativizar a verdade ou dizer que ela não existe (o que seria uma interpretação de má ) e, sim, de explicitar que é apenas a partir da construção de um efeito-de-dramaturgia que engendramos um efeito-de-verdade.

Tal é o caso dos recentes Camelos também Choram (Alemanha/Mongólia, 2003), de Davaa e Falorni, e A marcha dos Pingüins (França, 2005), de Jacquet. O primeiro parte do modelo observacional como premissa, organizando seu material sobretudo na montagem, na legendagem das falas que unicamente interessam ao desenrolar da trama fabular e nas filiações aos gêneros narrativos: o mito como vínculo fundador, explicitado no primeiro plano (quando o patriarca, em operação metalingüística, olha para a câmera e narra uma fábula) e o melodrama como trama. o segundo radicaliza tais procedimentos, apostando em um hibridismo do formato observacional com as possibilidades de explícita construção ficcional da narrativa clássica. Aos artifícios dramáticos mencionados no parágrafo acima, acrescenta-se o fato de que os pingüins (diferentemente dos camelos) têm interioridade psicológica, direito à voz e a planos subjetivos, além da presença de uma trilha sonora ostensiva.

Assim como em Camelos, Jacquet produz sentidos através da utilização dos gêneros clássicos: a trajetória épica, o desenrolar (melo)dramático dos acontecimentos, os eu-líricos dos três pingüins-protagonistas. Também o tom mítico e fabular é convocado no início, como para ressaltar a relação de pertencimento, familiaridade e ancestralidade dos pingüins Imperadores. A Marcha é sua narrativa fundadora, porém atualizada: híbrido de Odisséia com Velho Testamento e dos desenhos da Disney com os documentários científicos da National Geografic. Porém, de modo diverso de uma certa aparência de não-intervenção de Camelos, que, de fato, apenas oculta a roteirização e extrema organização do filme, Jacquet trabalha à beira da paródiaSua crença em seus artifícios é tão grande, e tão corajosa, que a ambicionada suspensão da descrença, buscada pela ficção, não apaga os procedimentos da manipulação (a interioridade psicológica dos pingüins, por exemplo), resultando em um ilusionismo não sem algum grau de reflexividade.   

Nesse sentido, o Big Brother Brasil também poderia ser abordado, na medida em que a edição organiza, com enorme habilidade, o material captado, roteirizando-o, potencializando os conflitos e controlando suas brechas. A diferença é que, ao contrário dos filmes citados, o BBB parte do anti-ilusionismo como premissa, revelando seus dispositivos de captação, sua estrutura de programação e fazendo de si mesmo o assunto principal. Aqui, sem nenhum filtro, a conscientização proporcionada pela encenação é marca assumida.

Mas, talvez o mais antigo “Spielberg-brechtiano” de que se tem notícia (ou um Peter Jackson com distanciamento crítico) tenha sido o ilusionista-cientista Philidor, que, na trilha das convicções filosóficas do Iluminismo no século XVIII, pretendia, através dos espetáculos de phantasmagoria, combater a credulidade do povo explorando o gosto do público pelo obscurantismo. Em uma época de feiticeiros, profetas, exorcistas, padres e monges era preciso aprofundar a diegese, o engajamento, radicalizando o efeito-de-crença, para, paradoxalmente, tornar os artifícios dramáticos tão explícitos quanto artificiais. Antes de começar seu espetáculo de phantasmagoria, Philidor proferia:

Não vos mostrarei espíritos, pois que não existem de modo algum; mas produzirei diante de vós simulacros e figuras, tais como supomos serem os espíritos, nos sonhos da imaginação ou nas mentiras dos charlatães. Não sou nem padre, nem mágico; não vos quero iludir de modo algum; mas pretendo vos assombrar. A mim cabe apenas fazer ilusão; prefiro servir à educação”.

Assim com Philidor utilizava o dispositivo ilusionista de projeção e imersão das phantasmagorias a serviço da pedagogia, é possível ver a recente aposta radical na explicitação dos procedimentos e artifícios ficcionais como uma forma de reflexividade, paradoxalmente, ainda ilusionista, e, talvez por isso, ainda mais eficaz. Ficcionalização que colocará em risco o próprio material documental e sua autenticidade tão pleiteada, tornando visíveis seus artifícios e construções, outrora sob a égide da transparência narrativa. No final das contas, é a partir da “ficção como única realidade”, defendida por Flusser, que o real poderá ser colocado em risco, em tensão, e que suas fissuras poderão emergir a nossos olhos, como tanto deseja Comolli.

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