ensaio
Documentário e ritmo
por Cezar Migliorin
É na alteração do ritmo que esse velho conhecido,
o mundo, suas palavras e coisas entram em profusão de sentidos entre
o individual e o coletivo. São construções rítmicas que fazem a
passagem do geral, do mundo exterior, do coletivo, com o individual,
com a memória. A freqüente concentração na temática do documentário
e, nos melhores casos, na atenção dedicada ao lugar da câmera e
do diretor, deixam de explorar as questões rítmicas que um filme
pode estabelecer com os objetos e com o mundo.
Na
tela, uma imagem é substituída por outra, o movimento da câmera
faz novos objetos e pessoas entrarem e saírem de quadro. Minha
atenção se renova nestas trocas e nessas passagens. Uma imagem
me deixa, uma nova se apresenta. Um som me lança em direção à
imagem ou dele me afasta e novas relações rítmicas se estabelecem.
Entender um ritmo é fazer o difícil exercício entre atender o
conhecido por parte do espectador e introduzir-lhe ao novo.
Quando
mostro um plano de uma árvore, ele pode ser muito rapidamente
entendido como árvore, mas se apresento uma imagem de algo que
nunca vi antes um outro ritmo me demanda. Nestes dois casos, estamos
falando apenas de um ritmo de reconhecimento, o que está longe
de ser a questão que se coloca no cinema. Obviamente, o cinema
não é arte onde os objetos são reconhecidos, apenas. Talvez essa
seja a definição do péssimo cinema; o do reconhecimento. Se há
então uma invenção no cinema, ela é, também (justamente), rítmica.
Como? É uma relação de ritmos fundada em quatro pólos não muito
distintos e que fora do reconhecimento não tem como serem absolutamente
determinados. O ritmo se dá então entre 1) o que conheço, 2) os
objetos que me apresentam, 3) o que demando nos objetos e 4) o
que me é oferecido e desconheço. A invenção então não está nos
novos objetos, narrativas, sons, mas na apresentação de dimensões
que não conheço no interior mesmo de cada objeto e esta invenção
se dá por uma produção rítmica na imagem.
Já
em 1926, o cineasta e teórico russo, Vsevolod Pudovkin
expunha em seu livro A técnica do cinema a idéia
de que uma vez que a decupagem fragmenta a ação e produz um outro
observador, distante do lugar do espectador do teatro, é a própria
relação com os objetos que se transforma: “Daí em diante, a câmera,
controlada pelo diretor, pode não somente capacitar o espectador
para ver o objeto, como também induzi-lo a apreender esse objeto.”
Me interessa nesta frase de Pudovkin esta percepção de que o objeto
é produzido com o espectador, como se o objeto fosse matéria prima
para sua própria invenção. Entre o objeto e o espectador é uma
pulsação rítmica que se dá; relações de leitura, afastamento e
proximidade com as dimensões do objeto que vão compondo-o. O que
talvez Pudovkin esteja nos apontando é para a abertura que o ritmo
– a força do tempo – irá provocar nas coisas. Fraturando a estabilidade
do que na tela aparece.
O
dramaturgo francês, Valère Novarina escreve em seu belo livro,
Diante da palavra, a seguinte relação entre as palavras
e o ritmo: “Um livro inteiro pode surgir de uma única palavra.
A palavra está encoberta, envolta, secreta, soterrada: algo deve
aparecer de dentro – do interior da palavra e não do interior
do escritor....Eu as apanho, escuto ali dentro; as quebro: aparece
uma frase, uma cena, toda uma construção respiratória do livro.”
Tanto Pudovkin quanto Novarina, 70 anos depois, parecem estar
apontado para uma relação de multiplicidade que a arte, no caso
o cinema e a escrita, podem ter para com as coisas e com o mundo.
No
caso do documentário, me vejo em tempos recentes distante dos
temas, distante das falas e conteúdos que neles se expressam.
Como se no ritmo houvesse uma resistência do que há para ser documentado,
como se na pulsão que certos gestos e pessoas estabelecem com
a imagem pudesse aparecer uma distância com o clichê; do documentarista
e do documentado. Alguns fragmentos de documentários recentes
me ocorrem:
Em
Prisioneiro da Grade de Ferro, uma câmera passa a noite
na mão de um prisioneiro que baixa o tom de voz para não acordar
os companheiros e lentamente procura as palavras e as imagens
que se tornam um diário com pensamentos e narrativas ao vivo.
Suas falas se fazem menos importantes pelo conteúdo que expressam
do que pela forma que ele encontra/procura para usar a câmera
naquele lugar, com outros na cela. Ao mesmo tempo, são memórias
que ele busca. O diretor, que não estava presente neste momento,
recebe as imagens e as respeita, escuta, mantém no filme os silêncios,
o ritmo de quem fala, de quem procura uma imagem.
Em
Santo Forte, de Eduardo Coutinho, há um certo momento em
que as falas param e esperamos – o filme nos leva a esperar –
a chegada dos espíritos que não chegam. Naquele momento, o filme
ouve o tema de maneira rítmica. Uma respiração do narrado, do
tema e do personagem assume o filme.
A
Alma do Osso, de Cao Guimarães, é um filme sobre um personagem
e seu ritmo. Um filme onde a primeira fala aparece depois de 40
minutos, no qual a entrada do espectador está nesta relação que
o personagem estabelece com os objetos do cotidiano. O tempo real
aqui não tem nenhuma relação com a vigilância ou com a “espera”
de que algo virá. É um tempo sem promessa de futuro. O ritmo do
presente do personagem é o que nos mobiliza.
Não
vou aqui fazer uma lista exaustiva, mas apenas lembrar um último
documentário; Palavras no Atelier, de Arthur Omar. Trata-se
de um documentário sobre o artista plástico Eduardo Sued. No filme,
Arthur encontra Sued e durante algumas horas aponta o início e
o fim de cada fala, de cada comentário do "personagem”, durante
a gravação. Por vezes, Sued parece ter acabado de dizer o que
gostaria e Omar pede que ele continue, outras vezes Sued é bruscamente
interrompido. O principal procedimento do filme se dá então na
documentação de uma desprogramação dos ritmos. Como se o encontro
entre Omar e Sued fosse em si a necessidade e a possibilidade
de se inventar novos ritmos.
É o ritmo que se comunica com os espectadores; é
o que procuramos em um filme. Essa respiração da
obra, do autor. Todos estes casos acima parecem estar próximos
da noção de Andrei Tarkovski quando este diz que
o ritmo não é determinado pelo tamanho das peças
editadas, mas pela "pressão do tempo que corre através
delas". Não é a velocidade dos cortes que determina
um ritmo, mas a força do tempo como obstáculo para
o reconhecimento. É através de uma relação
rítmica que o mundo perde suas identidades estáveis.
A atenção para as variações rítmicas
do mundo e das coisas, a abertura para nosos ritmos; é
esta a ação da multiplicidade. Sendo a ação/atenção
do ritmo o lugar mesmo do documentarista que se aproxima do desconhecido;
percebendo a forma com que este pode afetá-lo e provocando
invenções rítmicas com a realidade.
Parafraseando
Octavio Paz, podemos dizer que o valor de uma obra está nos signos
que nos revela e na possibilidade de combiná-las, possibilidade
essa que só se dá como uma construção rítmica, a pausa e a aceleração,
a rarefação e o excesso, o silêncio e a estrondo, a ligação e
a fissura, o mecânico e o delírio: com o espectador um documentário
é maquina de significar. O que há para ser filmado são os ritmos
do mundo. Falta-nos agora pensar a questão do ritmo na integralidade
do filme, uma vez que já dedicamos especial atenção às questões
de ritmo no interior das seqüências. Em breve.
editoria@revistacinetica.com.br
|