Rocky Balboa (idem), de Sylvester
Stallone (EUA, 2006) por Paulo Santos Lima
30 anos essa noite Rocky
Balboa tem seus créditos finais ornados com cenas
de gente comum escalando a mesma escadaria da Philadelphia que o célebre boxeador
vem subindo desde o primeiro filme, Rocky - Um Lutador, de 1976. São os
fãs do personagem imitando seu astro, em imagens que confirmam a popularidade
de Rocky (e de Rocky). Imagens, também, que se fazem redundantes, porque
desde Rocky III (82) o diálogo de cada longa é justamente com essa devoção
coletiva nascida no primeiro filme, que faz com que a série trate, sobretudo,
da imagem mítica do lutador com os populares. Em todos os casos, o olhar sempre
se volta para trás, com cada episódio dialogando menos com seu momento (histórica
e cinematograficamente falando) e mais com algo que o antecede. Isso faz que os
Rocky sejam sempre uma tremenda experiência retrô. Mas é o novo filme,
Rocky Balboa, que mais honra o termo, passando pela epifania idólatra para
chegar a um diálogo direto com o longa de 1976. O
primeiro Rocky, dirigido por John G. Avildsen (mas já com roteiro escrito
pelo próprio Stallone, que usaria o próprio punho nas outras cinco seqüências),
era o aquecimento para a mitificação do herói. A câmera, neste caso, registrava
os ambientes miseráveis, depenados e meio escuros nos quais o batalhador Rocky
tentaria seu lugar ao sol. Uma apresentação do meio do qual o personagem emergeria
para seu estrelato, em meio a uma dramática e árdua batalha, cheia de intempéries,
fome, brigas e pobreza. Fruto de seu momento, Rocky continha em sua estética
elementos de um realismo que o cinema norte-americano já vinha há uma década realizando,
com câmera nas ruas, afinidade pelos párias sociais, leves desconstruções narrativas
etc. Mas enquanto a obra de um William Friedkin, John Cassavetes ou a blaxploitation
de Marion Van Peebles, por exemplo, traziam mundos sem conserto pleno, a saga
do lutador Balboa tinha como objetivo primeiro a sanitização de sua condição (sobretudo
de sua marginalidade, de sua obscuridade) via sucesso nos ringues. Em
outras palavras, enquanto a maior parte dos filmes americanos realizados nos anos
70 partia de uma “realidade” para chegar a um discurso crítico (construindo suas
dramaturgias num meio caminho entre a tradição do cinema de gênero americano e
a modernidade européia), Rocky, em 1976, usava o recurso estético (a câmera
na rua, por exemplo) para fins conservadores (ilustrar os despossuídos em sua
luta por novas condições de vida). Não me parece absurdo dizer que a travessia
do boa-praça Balboa tem sombras do cinema operário italiano dos anos 70 (aquele
feito por Elio Petri, Damiano Damiani, Francesco Rosi, que cunhavam uma cinematografia
de crítica social herdeira distante do neo-realismo dos anos 40), mas com final
glorioso para seu trabalhador. Rocky – Um Lutador seria, assim, o “neo-realismo
da vitória”. O motivo de drama em Rocky Balboa não
é diferente. Aposentado no pugilato, o ex-campeão agora luta contra a sua velhice
– algo grave porque o filme coloca a senilidade como sinônimo de morte, onde Rocky
só existe enquanto físico... e físico lutando num ringue. Assim, “habilmente”,
o roteiro de Stallone despreza que o ex-atleta agora é proprietário de um belo
e sempre lotado restaurante, tem filho bem encaminhado, várias histórias notáveis
para contar e ainda mantém franca amizade com seu cunhado Paulie (Burt Young),
cujo ombro lhe serve para choramingar a morte precoce de sua amada e fiel esposa,
Adrian, falecida desde o início da história. Viuvez que, aliás, diz respeito ao
filme, e não apenas a Balboa: apesar de as coisas não estarem, assim, tão mal,
a opção é por ver sempre o pior lado, o que resulta num grande velório na tela.
Assim,
o dono do bem-sucedido restaurante dorme inexplicavelmente num quarto morfético,
dirige um furgão podre, dá de comer às suas remelentas tartarugas ao som de uma
trilha sentimental, e comenta sobre a degradação do bairro onde ele emergiu para
a fama: antes, um bairro familiar; agora assiste a uma juventude perdida esgueirando-se
pelos esqueletos dos sobrados. Isso tudo é justificado pela câmera atenta aos
ambientes e seres carvoentos. No mais, a baixa luz é uma saída de Stallone para
dar um ar fúnebre àquele ambiente, o que torna o soerguimento de seu personagem
nos ringues algo, por assim dizer, imprescindível, senão magnânimo. Mais
que o saudosismo que assola a trama, é a idéia fatalista de que o mundo sempre
estará a nos golpear brutalmente e cabe à gente socar, brigar, mas sobretudo agüentar,
resistir bravamente e seguir em frente em meio à dureza da vida. É lutando contra
os impedimentos do mundo, desse mundo nos apresentado tão drasticamente pelo filme,
que Rocky honrará o melodrama, pois sua meta é lutar contras as regras deste universo
tão árido que barra os velhos que tentam continuar vivos – repito, vivos, aqui,
significa estarem em grande produtividade física. Rocky, corpanzil pesado e um
bocado enferrujado, alguns quilos acima do esperado, olhar vencido pelo tempo,
lutará no cercado com toda uma série de realidades (diegéticas) que potencializam
a sua batalha. Curiosamente,
será um elemento bem contemporâneo (um programa de computador que simula o que
seria uma luta entre Rocky e o atual campeão mundial de peso-pesado, com larga
vitória para Balboa), que motiva o personagem a tentar novamente ocupar seu trono.
Na luta que se desenrola no epílogo do filme, Stallone opta pela dinâmica de cortes
ágeis da TV em suas coberturas esportivas. Nesse sentido, assim como Rocky
– Um Lutador estava relativamente afinado com sua contemporaneidade audiovisual
para discorrer sobre seus valores positivistas e conservadores, Rocky Balboa
é agudo ao captar o virtual. Talvez o mesmo procedimento cinematográfico feito
há 30 anos soasse retrô demais – mas mais démodé ainda soa o mesmo discurso
de vitória apolínea contido no filme de 1976. Rocky Balboa,
um tanto mal filmado, morfético como experiência cinematográfica, se mostra um
grande sintoma de nossos tempos: somente com a mídia, estando presente nela ou
através dela, é que um ex-astro como Sylvester Stallone (ou Rocky Balboa, tanto
faz) se mostra vivo. As celebridades inclinam-se à morte junto ao pôr-do-sol.
Rocky Balboa seria, assim, um Crepúsculo dos Deuses (longa de Billy
Wilder, de 1950) com final feliz. Sim, o discurso desse filme de Stallone é definitivamente
retrô. editoria@revistacinetica.com.br
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