edição especial curtas brasileiros
2009 Corredores, limiares por
Luiz Soares Júnior
Rosa e Benjamin,
de Cléber Eduardo e Ilana Feldman (São Paulo, 2009)
“Os
homens fazem sua história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições por
eles escolhidas, e sim nas condições diretamente dadas e herdadas do passado.
A tradição de todas as gerações mortas pesa com grande peso sobre o cérebro dos
vivos”. Marx, O 18 Brumário de Louis BonaparteA
primeira impressão que se tem ao ver Rosa e Benjamim é de que é um filme
que se contenta – como se isso já não fosse bastante – em descrever: descrever
um casal já idoso, mas sobretudo um casal ancorado firmemente em hábitos e modos
de ser, e de ser num lugar determinado, sentimental, geograficamente e historicamente,
lugar que talvez já não encontre um lugar no mundo atual. De qualquer modo, para
além desta situação em comum experimentada pelo casal de velhos, há igualmente,
claramente delineada pela diferença que a interpretação dos atores imprime a cada
personagem, uma forma singular de lidar com este mundo, intra-mundo, extra-mundo:
o homem é exuberante, expansivo, mas negativamente, se podemos julgá-lo assim
– um veio de ressentimento e de rabugice. Mas esta rabugice é o que “sobrou” de
uma vida ativa, um dínamo emperrado por não mais poder se exteriorizar numa ação
continuada, num trabalho. A mulher, quieta e quietista, é identificada como a
guardiã da casa; o close de suas mãos lidando com uma planta mostram que
ela é o emblema do cuidado e da atenção para com um mundo minúsculo, doméstico,
e que, à medida em que o espaço da cidade vai progredindo, ameaça tornar-se cada
vez menor. Se o homem representa um certo acumpliciamento
com o Fora, violentamente ativo e diligente – atividade e diligência que, nos
planos de um corredor deserto ou de uma “natureza-morta” sobre a mesa, além das
“notícias” trazidas pelo marido, mostram estar começando o seu trabalho de “infiltração”
do Dentro, do reduto doméstico pela Cidade -, a mulher é a foz, tanto da
fala do homem, impaciente e animosa, quanto do espaço da casa. Ela recolhe a torrente
da fala do marido em um quadrante de acalanto que lhe apara as arestas, e permite
um certo equilíbrio na distribuição de forças que equaciona toda vida, mais ou
menos gregária: as relações com o mundo exterior e a introspecção. O interior
em Rosa e Benjamim parece-me uma espécie de campo de provas das forças
demolidoras, circundantes e circunavegantes, que espreitam os limites da casa
e os hábitos do casal- ambas as dimensões se confundem aqui: o meu território
começa, não exatamente na casa, mas no gesto – de arrumar a casa ou reler
o jornal -, na impressão de pegadas plástico-figurativas, que o corpo humano executa
como nenhum outro corpo, sobre um espaço e um tempo meus, abertos à inspiração
da memória e às analogias da imaginação. Mas o tempo urge,
um outro tempo, correlato a outros espaços, maciços e predatórios; se o tempo
privilegiado pela “ocupação” de Rosa é o da acumulação de vestígios, o tempo do
patrimônio secreto, de minúcias e insignificâncias que são o inventário de uma
vida única, o tempo da Cidade é o da erosão e da espoliação; da substituição da
experiência compartilhada, enraizada e arraigada (e, neste sentido, uma certa
intransigência do personagem de Haiut aponta não apenas para a cumplicidade “demoníaca”
com o Fora, mas igual – e ambiguamente – uma “neurastenia de resistente” de alguém
que não deseja ceder, digamos assim). E um dos grandes méritos do filme é justamente
saber modular a balança destes tempos e destes temperamentos, que não são estritamente
divididos e/ou opostos, como pareceu sugerido aqui , mas que se deixam apreender
apenas no espaço espiralado próprio a toda passagem, a todo passar, uma
trajetória entre os corpos e os tempos que se engastam neles: os planos
“travesseiro”do corredor e da mesa podem ser lidos tanto como índices da entropia
irremediável da vida interior quanto como jazidas onde o tempo se deixa acumular
e, em sua mais-valia metafísica, ser um posto de contemplação. Rosa
e Benjamin não é um filme elegíaco, enlutado, um filme que se debruça sobre
um mundo irrecuperável para cristalizá-lo/retê-lo na imagem; não diria também
que é um filme que opõe o circunscrito quarto e sala existencial do casal como
uma trincheira de resistência ao gregarismo onívoro da Cidade, gregarismo expresso
pelo impactante relevo que o filme fornece visualmente à arquitetura. Eu disse
no começo deste texto que o filme se contenta em descrever uma atmosfera presente,
e neste sentido pode ser identificado a uma crônica; mas ele também registra,
como todo filme atento à matéria primeira e última do cinema, o tempo, a iminência
do advento de um novo estado de coisas – uma mudança radical ou destrutiva;
uma mudança simplesmente, de casa e de hábitos, valorações à parte – e a permanência
de um estado de coisas anterior. Neste sentido, é um filme de suspense anti-clímax,
pois “o que virá” permanece resguardado/guardado no contracampo, assim como Rosa
resguarda/guarda a plantinha da voz off vituperante do marido; e neste
intervalo entre um passado não mais presente e um futuro ainda não presente se
sela a cumplicidade que todas as coisas finitas, idas e vividas ou por-vir, mantém
entre si. Janeiro de 2010
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