O Nome Dela é Sabine (Elle s’appelle Sabine),
de Sandrine Bonnaire (França, 2007)
por Julio Bezerra

À minha irmã, com carinho

Desde pequena, Sabine se mostrara uma criança “diferente”, que pedia um pouco mais de atenção. Depois de várias crises e tentativas de tratamento, por falta de um lugar que aceitasse uma paciente como ela, Sabine foi internada em um hospício, onde viveu por 5 anos. Quando saiu de lá, estava 30 quilos mais gorda e com os cabelos raspados, entupida de fortes medicamentos, completamente dependente. Sabine é irmã da famosa atriz francesa Sandrine Bonnaire (Mulheres Diabólicas, A Nos amours), aqui estreante atrás das câmeras. Quando adolescentes, Sandrine filmava obsessivamente a irmã um ano mais nova. Em uma recente entrevista, ela diz que a idéia era um dia mostrar para Sabine as imagens de um passado doloroso, mas superado. Contudo, como vemos no filme, aconteceu o contrário.

O Nome Dela é Sabine é composto de dois momentos. O primeiro sublinha a juventude de Sabine, registrada em vários vídeos de família. Nessas imagens de arquivo, seu olhar esbanja vivacidade. Ela dança e toca piano, vai à praia e viaja aos EUA. A segunda Sabine é captada no presente, em uma instituição especializada (aberta graças à "notoriedade" da autora do filme). Agora ela é outra: gorda, dispersa, cansada e insegura. Ainda assim, ao que parece, Sabine já melhorou bastante desde que deixou o hospício. Sandrine costura esses dois períodos com uma pontual narração em off descritiva, sem adjetivos. O filme não se interessa em expor misérias ou questionar a veracidade de um diagnóstico. Tampouco se empenha em críticas ao tratamento psiquiátrico na França. E embora a culpa seja aqui algo palpável, O Nome Dela é Sabine não tem como propósito culpabilizar seja a família ou alguma instituição. A intenção é de outra ordem.

O Nome Dela é Sabine, diz o título do filme. Sandrine não quer reduzir sua irmã a um diagnóstico. O risco é mesmo grande. O autismo (como qualquer mal psíquico) tende a se sobrepor ao paciente. É contra isso que Sandrine se debate. O depoimento da psiquiatra da casa onde vive Sabine a ajuda: o autismo é um problema de adaptação ao mundo. O longa procura então valorizar sua personagem, afirmá-la perante esse mundo. E assim, Sandrine monta uma série de cenas em que sua irmã demonstra vaidade, orgulho, simpatia. Sabine se diz feliz por nadar na piscina, adora comer em uma determinada lanchonete, e se surpreende ao se olhar bela no espelho. O documentário se afirma então no registro afetuoso que Sandrine faz do cotidiano de sua irmã. Sabine comendo, babando, deitando no chão, brincando na piscina, comprando roupas, gritando sem mais nem menos, etc.

A grande maioria dessas imagens foi captada pela cineasta. Embora ela quase não apareça, sua presença marca o filme. Pois Sandrine assume não só o papel de narradora, como também o de câmera. “Sandrine, é certo e seguro que você virá me ver amanhã?” pergunta Sabine diretamente à câmera mais ou menos a cada duas cenas. O olhar da diretora, o olhar da câmera e os nossos olhos se fundem. A câmera opera como uma extensão do corpo de Sandrine: ela respira, hesita, duvida, se aproxima e se distancia. Ainda que Sandrine não leve essa premissa de um “corpo-câmera” às ultimas conseqüências, cria-se uma espécie de curto-circuito nas estratégias do filme. O que se percebe é, de um lado, uma frieza calculada na narração e o uso clínico da câmera e das imagens de arquivo; do outro, uma enorme afetividade e franqueza em relação ao que nos é mostrado. É como se o filme buscasse, dialeticamente, material para identificação (com os personagens dessa história e os seus dramas) e os meios de distanciamento que não nos deixem esquecer da gravidade dessas imagens. Afinal, a convivência com Sabine ainda é difícil.

Sandrine soube sabiamente não pôr seu filme a serviço do sentimentalismo. Muito pelo contrário, é a sua frieza (estranhamente afetiva) que nos acorda para as dores dessa história. O tipo de olhar proposto ao espectador neste filme vai na direção contrária ao oferecido, por exemplo, pelos reality shows. Embora gire em torno de questões pessoais, O Nome Dela é Sabine não está a serviço de uma expressão narcísica. Não há invasão de privacidade, mas cumplicidade. Sandrine nos chama para mais perto, nos convida a acompanhar o filme, não sua intimidade. E o filme nos envolve menos com ordens ou imperativos retóricos do que com uma sensação relacionada com sua sensibilidade. O espectador se envolve de maneira indireta, por intermédio da carga afetiva aplicada ao filme e que o realizador procura tornar nossa.

O filme ainda guarda um final desconcertante. Sabine vê imagens do que talvez tenha sido o momento mais feliz de sua vida: uma viagem com a irmã à Nova York. Ela se reconhece jovem e bonita, e chora, “de alegria”, diz ela. Uma alegria recheada de tristezas, “uma alegria difícil”, diria Clarice Lispector, mas ainda assim uma alegria. Ao ver a si mesma através dos olhos da irmã (e aos nossos olhos), Sabine é tocada pela emoção, pelo reencontro com um eu que havia se distanciado dela mesma. Ela se encontra de novo, via as imagens do filme caseiro. É o próprio cinema que reafirma suas potencialidades. Sem defender uma tese, sem ensinar ou sugerir nada, o filme abre um certo horizonte de possibilidades que estava virtualmente fechado para Sabine. E no fim, ela pede para ver o DVD novamente.

Setembro de 2009

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