Salt, de Phillip Noyce (EUA, 2010)
por Rodrigo de Oliveira

SaltA americana intranqüila

Por volta do vigésimo minuto de Salt, já acostumados à idéia de que ali se testemunha a falsa acusação de traição sobre uma mulher inocente, apaixonada e destemida o bastante para fazer o diabo em nome da absolvição, tem-se a impressão que o projecionista errou na hora de organizar a ordem dos rolos de filme. A diferença radical entre tudo isso e a mulher viciosa, malévola e cheia de culpa no cartório que agora aparece, está há um corte de distância - e será assim pelo resto do filme, conservando esta sensação de que não há truque de roteiro que resista à potência de um truque de montagem. Não há tempo para razões, nenhum personagem se dispõe à exposição da trama, nada do que se depreenda da ação pode ser tomada pelo verbo - e a partir desse vigésimo minuto, nem sequer pela imagem, ela mesmo tão mais mentirosa que qualquer palavra.

Há que se reconhecer que isto tudo só é possível porque esta mulher é Angelina Jolie, e porque Salt talvez seja o primeiro filme a usar firmemente a seu favor tudo o que o culto à celebridade exacerbado pela Internet e revistas de fofoca nos últimos dez anos causou a essa meia dúzia de sobreviventes chamados "estrelas de cinema". A rigor, não há cineasta na indústria americana, hoje, disposto a fazer o que Sergio Leone fez com Henry Fonda na introdução de seu vilão em Era Uma Vez no Oeste - a revelação de um ator jogando no oposto completo de seu tipo mais reconhecível, por puro desejo de constranger Salto espectador em seu conforto do já-visto e, sobretudo, que essa revelação esteja declarada pela postura da câmera e do corte muito mais que pela construção dramática do próprio ator. Salt está longe de ter a dimensão meta-histórica do clássico de Leone, mas ao mesmo tempo só pode existir porque estamos, o tempo inteiro, pensando aquilo que o cineasta italiano esperava do espectador quando Fonda entrava em cena: "não, não acredito que é a Angelina". E para cada dado da vida pessoal da atriz, Salt impõe uma nova dúvida; cada manchete gera uma nova seqüência: é ela, a mãe de seis filhos, deitada de calcinha e sutiã no chão de uma prisão suja da Coréia do Norte; é ela, bem casada com o melhor partido do mundo, assistindo o assassinato de seu marido sem mover um músculo de pesar sequer; é ela, conhecida agente humanitária, matando primeiro e perguntando depois. Acabamos descobrindo, eventualmente, quem é Salt - mas Angelina volta, ilusoriamente, a ser um mistério.

O crédito dessas transformações contínuas e insuspeitas é todo de Phillip Noyce. Na esteira dos heróis em crise identitária à Jason Bourne, o que Salt propõe de novo é que qualquer despertar espiritual e retorno à origem se dá exclusivamente na cabeça da protagonista, e nunca vira cena - o que quer que Salt repense sobre sua própria história de vida se passa entre um corte e outro, e o que nos resta a ver é a personalidade aplicada, nunca a personalidade reflexiva; é Salt sendo as inúmeras Salts que pode ser, sem a confusão mental tradicional nesse tipo de herói. A psicologia fica relegada aos intervalos, e o que surge na imagem é a fisionomia pura destas variações. Se a cada seqüência seu corpo é potencialmente diferente, marcado por outro passado, outros afetos, outras fraquezas, às vezes até contraditórios entre si, o caráter episódico do filme ganha dimensões quase sobrenaturais. Não é todo dia que um blockbuster barulhento de verão (e Salt no fundo é apenas isso) chega a falar sobre o espírito, sobretudo quando lida imediatamente apenas com matéria, camaleônica, explosiva, estilhaçada que seja. Um estilhaço americaníssimo, aliás - que Salt tenha sido lançado nos Estados Unidos poucas semanas depois de uma célula de agentes russos ser descoberta no país só aumenta a impressão de que o gosto pela paranóia soviética em Hollywood não envelhece porque a vida insiste em alimentá-lo. Salt é uma sleeper spy, literalmente uma "espiã adormecida", ou em tradução mais cabível, uma "espiã que dorme no emprego". Implantada no coração da América por chefões da KGB, ela viveu por 20 anos uma falsa identidade local até ser despertada para sua missão. Tal disfarce exige, como se diz no filme, treinamento em "idioma, idiossincrasia e ideologia" americana.

Salt se cria como o personagem prototípico do cinema de ação hollywoodiano dos anos 2000: atravessar uma cidade em fuga ou perseguição não significa esgueirar-se por becos e ruelas, sempre correndo em postura de velocista (como fazem os ingleses, sobretudo o Bond redescoberto em Cassino Royale), nem significa ver a arquitetura como plataforma para o espetáculo de um corpo que se sincroniza a ela (é assim com os franceses e seus filmes feitos sob a técnica do le parkour) ou que busca seus espaços mais obscuros para agir em silêncio e sem grandes gestos (papel dos russos, inclusive aqui). Ir de um viaduto a outro significa destruir as muretas que os separam, pular de um carro a outro desrespeitando a natureza do espaço e da física; para se trazer um presidente cara a cara não se arma um seqüestro de trama complicada, basta implodir o chão em que ele pisa e pronto. É o auge da trajetória do self-made man, agora woman, egocêntrica, dada ao improviso e com mania de protagonismo, que elimina todos os selfs à sua volta em nome de uma verdade que detém com exclusividade. Denominador comum nesse tipo de personagem, por mais malabarismo que a montagem faça, é que carregam sempre uma postura de "confia em mim que sei o que estou fazendo". A diferença é que, casada, mãe de muitos e embaixadora do Unicef, Angelina Jolie agora dispõe também de absorventes íntimos e meias-calças para levar o inferno ao mundo até que saibamos de fato o que ela tem na cabeça.

Setembro de 2010

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