Santiago, de João Moreira Salles (Brasil, 2007)
por Cezar Migliorin

Entre o saber e a experiência

Entre 1997 e 2007 João Salles dirigiu 8 documentários, entre eles os brilhantes Futebol (1998) e Nelson Freire (2003). Em Santiago (2007), vencedor do Grande Prêmio do Festival Cinéma du Reel, em Paris, é o aprendizado de sua profissão durante esses anos todos que o documentarista transforma em filme ao retomar as imagens feitas em 1992 para um documentário que agora ele finaliza.

Santiago é o nome do filme e do personagem. Durante 30 anos, Santiago foi mordomo da família de Salles, uma família muito rica, culta e influente, como fica claro no filme. Santiago trabalhou na casa da Gávea, onde João Salles morou até os 20 anos e que hoje abriga o Instituto Moreira Salles, um centro de referência para a música e para a fotografia no Rio de Janeiro.

Em 1992, o realizador percebeu a singularidade do homem que viria a ser seu personagem no filme. Já aposentado, Santiago mora em um pequeno apartamento do Leblon, no Rio de Janeiro. Ali leva uma vida solitária entre as 30 mil páginas que escreveu relatando os dramas e vidas de mais de 500 anos de nobrezas e dinastias de todo o mundo. Santiago se relaciona com esse passado, seu e das nobrezas - ele de certa maneira viveu em uma - com a paixão de quem acompanha um folhetim, uma novela, um melodrama. Como frisado pelo filme, seu universo se estende entre épocas e culturas, entre Hollywood e Versailles, entre Gioto e Beethoven.

Apesar do personagem, João Salles abandona o filme em 1992. Quando retoma o filme em 2005 é ele próprio que vira personagem. Narrado em primeira pessoa, na voz do irmão, Fernando Moreira Salles (apresentado em inglês no festival em Paris, com narração de Fernando Alves Pinto), o processo do filme passa a fazer parte dele e aparece, sobretudo, como uma autocrítica ao seu modo de conduzir o filme em 1992 e ao fato de na época não ter percebido a relação de poder ali presente. Ao poder do documentarista se somava o poder do filho do patrão. Em uma das cenas mais reveladoras e afirmativas, Salles é chamado de “maravilhoso Joãozinho” por Santiago. Cena que na época João Salles pede a Santiago para repetir sem mencionar seu nome e que hoje é parte do filme. Durante as filmagens a hierarquia deveria ser apagada, hoje ela é tema do filme.

Fundamentalmente o procedimento do filme hoje é esse; a claquete está presente, a fala de Salles antes do comando de “ação”, os retakes, o off. Através da presença do que normalmente é eliminado na montagem de um filme, reconhecemos os pontos que perturbam Salles hoje; a direção das falas, textos e gestos e o excesso de zelo estético na composição dos quadros e no trabalho da fotografia.

O embate de João com essas imagens do passado é sereno, tranqüilo até. O off bem acabado, pensado e meticulosamente armado destoam do filme-problema que Salles parece ter desejado fazer. O filme é um problema bem resolvido. Na única seqüência efetivamente montada em 92 e que agora é apresentada ainda com o time-code exposto na tela, indicando que nunca fora finalizada, que nunca deixou de ser uma cópia de trabalho, há uma música que a envolve. A crueza do que ainda estava sendo trabalhado é amenizada pela trilha sonora. Nesta seqüência, o próprio processo do filme-processo é excluído, assim como as dúvidas da sala de montagem, as hesitações do texto e do off. Santiago é um filme puro sobre a impureza intrínseca ao documentário.

Santiago era um ator para o filme e a sua preocupação em atuar de maneira convincente é bonita e emocionante. Porque este personagem não merece que o quadro seja composto, que sejam feitos retakes? O filme de 92 era contaminado pela própria forma estética e fabulosa que Santiago se relacionava com o mundo, e essa dimensão do documentário é possível. É nesse filme, nesse tipo de documentário, que Salles não acredita mais. Há uma dupla perda que acaba por se consolidar. O filme se mantém na superfície do processo e não efetiva a ponte entre Santigo e o universo da Casa da Gávea e, ao mesmo tempo, é o próprio Santiago que se perde nos excessos presentes nos retakes que a descrença no filme de 92 nos traz hoje.

A constante repetição dos retakes, além de revelar o processo controlado em que João Salles enquadrava seu personagem, é também motivo de riso na sala. Evidentemente, o riso não é a princípio ruim, ele pode ser uma forma de compartilhar o universo do personagem, um riso de quem criou uma conexão, um mundo compartilhado. Mas, o que perturba em Santiago é que o riso é provocado por um procedimento singelo e que faz parte da auto-crítica de João Salles. Deveríamos então rir de Salles, mas não é o que acontece. Se em 92 Salles fazia Santiago falar o que ele queria, hoje ele o faz falar essas mesmas coisas várias vezes.

O problema entre o filme de 92 e a montagem de agora não está entre duas formas de fazer documentário, duas crenças - ou descrenças - na verdade e na possibilidade de o documentário falar do outro. O problema central é entre saber e experiência. Há algo que não mudou entre 1992 e 2007. João Salles sabe o que é um documentário. Este saber mudou, suas crenças na imagem e no controle sobre elas se transformaram, entretanto, no momento de fazer o filme não é a experiência com as imagens, as dúvidas sobre o seu lugar que aparecem e sim uma nova e afirmativa certeza.  Neste sentido, o filme aparece como uma síntese desse saber que se transformou. No filme de 2007, João Salles continua sabendo o que ele quer das imagens - nesse sentido não há transformação entre 1992 e 2007.

Uma seqüência destoa disso tudo. No meio do filme, em uma imagem de época, provavelmente em super-8, vemos a família de Salles brincando na piscina da casa da Gávea. Enquanto vemos a banalidade de um domingo em família, o silêncio dessas imagens se faz presente e traz um passado que pertence a João Salles e a Santiago. Naquela cena sobrevive uma tensão que o filme suaviza. As imagens em super-8 estão ali como que procurando um lugar, parecem ainda não incorporadas ao filme, estão libertas da música e do off que organizam a experiência dessas imagens. Esta imagem de época aparece como a abertura que o filme faz para o seu futuro, ela comporta a potência das perguntas feitas na montagem; o que fazer com essas imagens ricas e problemáticas? É nesse pequeno detalhe que o filme se mantém vivo. É nesse momento silencioso que somos tocados pela vitalidade e coragem de Salles em fazer esse filme.


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