história(s) do cinema brasileiro
Um outro tipo de marginal
Person e Carlos: trajetórias do autor e do personagem de São Paulo S/A
por Andrea Ormond

São Paulo Sociedade Anônima, de Luiz Sérgio Person (Brasil, 1965)

O jogo magistral na abertura de São Paulo S/A revela a engenharia cuidadosa de Luiz Sérgio Person (e um Ricardo Aronovich, fotógrafo, bem mais solto do que em Os Fuzis, de Ruy Guerra). Observamos a briga de Luciana (Eva Wilma) e Carlos (Walmor Chagas), ruídos aleatórios, o vidro da varanda impede que o som escoe. O silêncio e o chiado transformam-se, rápido, em grandiosidade com a entrada da música de Cláudio Petraglia e das panorâmicas de São Paulo. O retrato é diferente daquele de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny na Sinfonia da Metrópole (1929). Projeta na tela algo nada parecido com a ordem, o civismo e deslumbramento tecnológico do parente distante de 1929, pré-quebra da Bolsa.

Person subverte os clássicos de René Clair ou Charles Chaplin, a crítica romântica à mercantilização do trabalho. Ele retira o protagonista do papel de herói, e sequer o coloca no papel de vilão. Nem de bom filho, nem de bom namorado, nem de bom amante, nem de bom pai. Olha cínico para o relógio quando Hilda (Ana Esmeralda) fala pela primeira vez em suicídio – um exemplar, debochado, de “O Pequeno Príncipe” dorme na estante do apartamento. Atravessa uma ponte – momento extremamente simbólico –, do nada rumo ao nada e caminha por um jardim parecido com de Marienbad, ao lado de Ana (Darlene Glória). A toda a hora, o rito facial de tensão e entranhamento, corretos na atuação de Walmor, estreante no cinema. Cansado, o balzaquiano não quer nem mulher, nem filho, nem Arturo, nem Ana. Rouba um carro no estacionamento – o adesivo “fabricado no Brasil”, ironia finíssima de Person. Dirige para a Serra do Mar, atitude de adolescente, ímpeto de beira da estrada. Dorme, uns peões o acordam. Toma carona em um caminhão, volta para São Paulo.

Mesma saída dramatúrgica e mesma idade do Alain Leroy no Le Feu Follet (1963) de Louis Malle, no sentido contrário: rumo ao fracasso, ao ponto de onde saíra, “recomeçando, recomeçando sempre”, no que parece a crônica da derrota anunciada. Nunca atinaria a profundidade da fuga que para Alain Leroy era sólida, inadiável e, ao cabo, cumprida. Carlos é um personagem que se integra na memória afetiva do cinema brasileiro, presença constante nas listas dos maiores. Mito do desbravador confuso, insistente, filme-símbolo de uma cidade que – ainda hoje – se mira desconfiada no espelho do país, e do jovem diretor que ousou sonhá-la como matéria-prima da arte.

Um homem à parte

São Paulo Sociedade Anônima costuma atiçar uma neurose coletiva. Os chatos, naquela afobação de anedota, rezam para que o filme se torne a bandeira de uma indústria cinematográfica paulista, ortodoxa e autocentrada. O título grandioso, o uso da cidade, o elemento empresarial – o S/A – travestido de anonimato urbano, contribuem para a tolice ufanista. Mas vocação para baluarte e defensor cívico de Piratininga não era bem o método de Luiz Sérgio Person. Alheioà defesa raivosa e intransigente do ideal de província, caso estivesse no rebu de 32 provavelmente bailaria como as criaturas da “Orquestra de senhoritas”, peça de Jean Anouilh – uma das que dirige, no Auditório Augusta. Montado a galope, ajeitando o fraque e os chinelos, Luiz Sérgio Person urraria imprevisto, surreal, golpes de gente onírica no espaço.

Diretor, criador do roteiro, morto aos 39 de idade, sem o tempo de costurar uma obra que dialogasse plenamente entre si. Corte abrupto, inesperado, projetos na gaveta.
Ator bissexto, publicitário, às voltas com o teatro – ainda garoto, ao lado de Flávio Rangel, e depois na maturidade. Cinco longas, alguns curtas, aulas na Escola Superior de Cinema São Luiz. Dirige Um Marido Para Três Mulheres em 1957, lançado Marido Barra Limpa em 1967, quando lhe tiram dos créditos. Sem o apoio de uma Vera Cruz ou de uma Maristela, solto em termos de produção, adota uma postura agressiva para São Paulo S/A – forma como São Paulo Sociedade Anônima viria a ser tratado pelos espectadores.

Junta-se a Nelson Penteado e Renato Magalhães Gouvea, da Socine. Planejam, enfatizam metas, orçam, divulgam. Espírito contrário ao daquele cooperativismo mambembe que caracterizou os primeiros cinemanovistas. Fato, porém – e eis a complexidade que precisamos entender –, que não o elimina de todo do grupo. Se o movimento queria reformulação, inventividade, São Paulo S/A coloca Person (e o fotógrafo Ricardo Aronovich) no topo, como um susto, inesperado. Direto no colo de Carlos Diegues, David Neves e Alex Viany – que lhe atribuem a glória máxima de antikhouriano, sintomática na guerrilha de quererem enterrar os ossos de Walter Hugo. No futuro, desdizendo a ótica do novo cinema, Person viraria chanchadeiro James Bond em Cassy Jones, O Magnífico Sedutor (1972), rodado na Guanabara. E contrariando a careta de sectário do viaduto do Chá, colabora no “Pasquim”, o hebdomadário da mesma localidade, residência de Vinícius de Moraes, cujo poema “Angústia” serviu de fonte inicial para São Paulo S/A.

Um personagem à parte

No filme, original e alheio aos cânones mais próximos, LSP descreve o arrivista social que não quer sê-lo. Carlos perambula pela represa de Guarapiranga, praia de São Vicente, interior e centro de São Paulo. Andarilho, como o estrangeiro de Albert Camus ou o atormentado Marcelo, de O Desafio (1965), de Saraceni, Carlos é, porém, anódino, fraco: caberia numa loja, vendendo relógios ou carimbando papeletas. Dá sorte de presenciar o estouro automobilístico na era JK – “Os episódios dêste filme são fictícios e ocorrem entre os anos de 1957 e 1961”. Ele dos 25 aos 29. No trabalho, no cursinho de inglês, na família. Carlos se aborreceria em mudar o mundo ou “um tempo de guerra, um tempo sem sol”. Bate cabeça no que Rogério Sganzerla chamaria de boçalidade e no que Person coloca de insaciedade. Vazia, tola, sem origem, sem chegada. Para Marcelo, o slogan datado de “pequeno burguês” seria a pior das lepras, e eis que essa é a rotina de Carlos.

Zonzo, ele se atormenta e atormenta a esposa, as ex-namoradas e o cúmplice no trabalho. A estrutura é essencialmente de egoísmo. Massacrante, arremessando o massacre de volta para quem estiver perto. Estapeia Ana, toma um pilequinho para ficar lúcido, faz pouco caso de qualquer curiosidade artística que Hilda lhe apresenta. É o obtuso da esquina, como o irmão de Luciana – que morde uma coxa de frango ao ouvir a notícia de casamento da garota –; em slow motion, introvertido, paranóico. Paranóia que as imagens da Amplavisão, de Primo Carbonari, fusionam com a cara lúgubre da cidade. Carlos gira pela praça da República, velhas surgem com panos na cabeça, mascates de camisa puída, a corrida de São Silvestre – ainda era à noite –, trilhos de bonde sendo retirados do asfalto. O externo se liga ao interno. O documentário se intercala com a ficção. A montagem trabalhosa de Glauco Mirko Laurelli – parceiro do diretor na Lauper Filmes, produtora de O Caso dos Irmãos Naves (1967) e Cassy Jones (1972) – garante os cortes temporais e a tarefa difícil de equalizar os registros de documentários dentro do filme, considerando-se a diversidade estéticas entre as matrizes.

Lança-perfume, livros, suicídio de Hilda – Ana Esmeralda foi dublada, evitando o sotaque espanhol forte da atriz. Hilda é provavelmente a mulher de maior utilidade para Carlos. Sente por ela um respeito que não consegue ter por Luciana, a suburbana carreirista, metódica, o pai esconjurando umas preleções espirituais que aborrecem o futuro noivo. Têm um filho, passeiam no sítio de Arturo, ouve-se o “Hino à Bandeira” melancólico, cantado por Carlos, que estraga a rodinha de felicidade. Crianças se esgoelando, cachorro sentado no banco do carro, pratos de macarronada. Na personagem de Ana, LSP mistura pin-up e novela. Viaja de lancha com rapazes, visita a mãe no asilo, entrega-lhe frutas. Sem a proteção de Carlos, pede a Arturo emprego para uma coleguinha, modelete. O canastra diz que entrará em contato com os manda-chuvas da Tupi. Entre eles, uma brincadeira a la Nelson Rodrigues, Arturo cita o compositor da trilha sonora, Cláudio Petraglia.

Arturo – encarnado Zeloni, o referencial de ítalo-brasileiro – faz o imigrante boa-praça, bom pai, esquece qualquer exame de consciência e ganha as marolas na base do jeitinho, do sorriso. Vende auto-peças, usa a falácia do “Brasil país do futuro” mas se recusa a dirigir as baratinhas nacionais. Em “grandes e desonestas ambições”, sonega impostos com Carlos, descumprem a legislação trabalhista, manipulam os empregados. Sinal dos tempos, revela postura excessivamente cética de Person com o diabo do regime capitalista, o mesmo que lhe permitiu se unir à Socine. Foram, aliás, o marketing e a urbanidade de Nelson Penteado e de Renato Magalhães Gouvea que deram à equipe o sinal verde para gravar nas instalações da Volkswagen. Aparecem os macacões e a identidade visual da empresa, sem pudores, à moda metalinguística – idem o chope da Antarctica, mamado por Carlos e Arturo.

Costuma-se debater qual teria sido a influência do cotidiano de Person em São Paulo S/A, haja vista o fato de que trabalhou em uma fábrica do avô – antes de estudar na Itália, dar aulas na São Luiz e implorar para que José Mojica Marins não lesse os livros de teoria comprados por Gustavo Dahl. O problema é que não é lá muito razoável acreditarmos que a experiência tenha se tornado a razão única e exclusiva do processo criativo. O aspecto behaviorista – de o diretor vivenciar situações no plano pessoal – não esgota a essência de Carlos, pois ela não mora apenas na fábrica, no conluio do trabalho, mas na impossibilidade de ser homem inteiro, em si mesmo. Arturo e Ana estrelariam uma continuação do longa, mas sabe-se lá como isto se daria – o projeto foi abandonado.

Março de 2011

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